Rio

Para manter cirurgias de emergência, oito hospitais municipais cortam 70% das operações eletivas

Souza Aguiar, no Centro, e Miguel Couto, na Gávea, são alguns dos atingidos

Cena rara. A emergência do Hospital Rocha Faria, sem pacientes
Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Cena rara. A emergência do Hospital Rocha Faria, sem pacientes Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

RIO — A crescente crise que se desenha na saúde municipal vem aumentando a agonia de pacientes que estão na fila por cirurgias. Segundo relatos de diretores de hospitais à Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio, os oito grande hospitais de emergência da cidade, sofrendo com a falta de insumos básicos em seus estoques, estão sendo obrigados a suspender ao menos 70% das operações eletivas (programadas) para dar conta da demanda de quem precisa ser operado com a máxima urgência. De acordo com o vereador Paulo Pinheiro ( PSOL ), membro da comissão que tem visitado as unidades, o problema se agravou no último mês:

— O problema é de toda a rede. As UPAs não estão atendendo, então a frequência de pessoas na porta de emergências como as do Souza Aguiar e do Salgado Filho aumentou. A falta de materiais aumenta a fila por cirurgias eletivas. Se elas tivessem transcorrendo normalmente, a fila no sistema de regulação não estaria tão grande — ressaltou Pinheiro.

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Segundo o vereador, o Hospital Salgado Filho, no Méier, por exemplo, enfrentava, na última sexta-feira, a falta de 146 insumos básicos, como gaze e luvas, e de 57 medicamentos, desde analgésicos e antitérmicos até antibióticos. O hospital, segundo médicos que trabalham no local, tem apelado para o escambo: troca remédios sobressalentes com outras unidades para manter o estoque “baixo, porém abastecido”, como informou um profissional que pediu para não ser identificado. O número total de procedimentos cirúrgicos, que gira em torno de 550 ao mês, caiu para cerca de 450 em setembro.

— Estão dando preferência à emergência pela falta de materiais — disse um médico do Salgado. — A demanda está muito grande, e estamos priorizando o setor de trauma (por onde chegam baleados e acidentados). Enquanto os hospitais federais não entrarem na regulação e reforçarem a realização de cirurgias eletivas, não tem como resolver o problema.

Fila na porta do Hospital Evandro Freire: funcionários afirmam que dependem de doações de insumos Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Fila na porta do Hospital Evandro Freire: funcionários afirmam que dependem de doações de insumos Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

Segundo Pinheiro, o problema atinge também os hospitais Miguel Couto, na Gávea, Souza Aguiar, no Centro, Lourenço Jorge , na Barra, Pedro II , em Santa Cruz, Rocha Faria, em Campo Grande, Albert Schweitzer , em Realengo e Evandro Freire, na Ilha do Governador. Diante da situação dramática dos estoques, a prefeitura concordou, segundo uma fonte ouvida pelo GLOBO, com a liberação emergencial de R$ 26 milhões para uma parte dessas grandes unidades.

Questionada sobre a suspensão de procedimentos eletivos, a Secretaria Municipal de Saúde enviou uma nota afirmando que “todos os hospitais de emergência mantêm seus mapas de cirurgias eletivas, porém a prioridade nessas unidades será sempre para os casos de emergência e de maior risco que cheguem ao pronto atendimento”.

Um enfermeiro do Hospital Salgado Filho disse que faltam de luva a gaze, mas que o problema mais grave é providenciar roupa de cama para os leitos:

— Nunca vi faltarem insumos tão básicos na rede municipal desse jeito. Hoje estamos tendo problemas até com roupa de cama. Há um desgaste natural desses materiais e nenhuma reposição.

No Evandro Freire , na Ilha do Governador, funcionários contaram à Comissão de Saúde da Câmara, semana passada, que os estoques dependiam de “doações” de insumos, levados de ambulância, de outros hospitais.

ATENDIMENTO RESTRITO NO ROCHA FARIA

O atendimento no Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, continuava desfalcado ontem, um dia após 58 funcionários terem faltado ao plantão da madrugada. Pela manhã, a emergência só estava recebendo casos graves, apesar de a direção afirmar que nenhum médico deixou de comparecer ontem. Profissionais da unidade contaram, no entanto, que muitos técnicos de enfermagem, com salários atrasados, voltaram a faltar. Os que foram trabalhar acabaram sendo obrigados a dobrar o expediente e atender por até 30 horas seguidas. Os problemas no hospital levaram a 24 pedidos de demissão este mês.

Muitas pessoas que procuram o Rocha Faria voltaram para casa sem atendimento. Foi o caso de Alexandra Conceição dos Santos, que levou o filho Matheus Antônio, de 5 anos, mas não conseguiu que ele fosse examinado. Segundo ela, o menino, que estava há dois dias com 39 graus de febre, chegou a ser consultado em uma Unidade de Pronto Atendimento ( UPA ). Após os exames de sangue e urina do garoto não acusarem nada, ela resolveu tentar uma segunda opinião no hospital, mas não conseguiu:

— O que mais me revolta é que enterrei minha mãe há um mês. Ela entrou aqui com fratura no fêmur e saiu morta. Era um jogo de empurra entre os médicos. O ortopedista passava para o clínico, que dizia que era com o ortopedista. Agora estou há duas noites sem dormir, tentando saber o que meu filho tem, pois a febre não baixa.

Alexandre Valério, que acompanhava a mulher, Maria Luiza da Silva, que caiu de uma janela do segundo andar de casa, conta que os pacientes que chegaram ao Rocha Faria depois das 22h, na sexta-feira passada, não foram atendidos. Ele entrou na unidade por volta das 18h, antes da paralisação de técnicos de enfermagem:

— O Samu não está trazendo mais pacientes para cá desde sexta, por volta de 22h. Minha mulher foi bem atendida, recebeu atendimento, fez raio-X, tomografia e cirurgia no pulso porque quebrou o braço na queda, mas o hospital está vazio.

A organização social Iabas, que administra o Rocha Faria, afirmou que o hospital continua prestando atendimento, apesar do atraso de repasses de R$ 14 milhões por parte da prefeitura. Na última quinta-feira, a organização recebeu, pelo contrato do complexo hospitalar, repasse de R$ 5 milhões do município.

CLÍNICAS DA FAMÍLIA DEMITEM, DIZ ASSOCIAÇÃO

A situação atinge não só emergências, mas a saúde básica também. No cálculo da Associação de Medicina de Família e Comunidade, por causa da crise, 174 profissionais de clínicas da família foram demitidos desde o início do ano. São principalmente agentes comunitários de saúde, mas também enfermeiros e dentistas, por exemplo. Muitos atuavam na Zona Oeste, segundo o presidente da associação, Moisés Nunes.

— Muitos estavam lotados na área de Santa Cruz, que é muito vulnerável e onde as equipes percorrem grandes distâncias. Isso está acontecendo porque as Organizações Sociais não estão recebendo repasses da prefeitura e acabam demitindo — afirma Nunes. — A gente vê esse fenômeno com bastante gravidade, porque a principal tecnologia da atenção primária é a relação do profissional com o paciente. Se você fragiliza essa relação, fragiliza o cerne da medicina de família.

Para o ano que vem, a perspectiva é que a situação se agrave. De acordo com o vereador Paulo Pinheiro, o orçamento previsto para 2018 é de R$ 4,9 bilhões, o equivalente ao de 2016. Embora o orçamento de 2017 tenha sido de R$ 5,4 bilhões, até agora só foram usados R$ 4,5 bilhões por causa do contingenciamento de verbas. Na quinta-feira, a Câmara vai discutir esse valor em audiência pública com a Secretaria Municipal de Saúde e das comissões de Finanças e Saúde da Casa.