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Artistas acusam Santander Cultural de censura

Cancelamento de exposição por críticas a seu conteúdo moral gera reações pelo país
A obra "Travesti da lambada e deusa das águas" (2013), de Bia Leite Foto: Reprodução
A obra "Travesti da lambada e deusa das águas" (2013), de Bia Leite Foto: Reprodução

RIO — O cancelamento da exposição “Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira” no Santander Cultural, em Porto Alegre, virou alvo de acalorados debates e acusações. Inaugurada no dia 14 de agosto, a mostra deveria ficar em cartaz até 8 de outubro, mas foi fechada depois que grupos pressionaram a instituição contra o que chamam de promoção de pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Ao saberem da decisão, artistas, curadores, produtores de arte, mas também economistas, professores e profissionais de diversas áreas se manifestaram contra a posição do Santander. Ontem à tarde, a instituição anunciou que irá devolver à Receita Federal os R$ 800 mil captados pela Lei Rouanet para realizar a exposição. ONGs e entidades que se dedicam à promoção dos direitos LGBT marcaram para esta terça-feira, às 15h30m, em frente ao Santander Cultural, um ato em repúdio à decisão e em defesa da liberdade de expressão. Herdeiros da artista Lygia Clark (1920-1988), que tem duas obras na coletiva, prometeram participar. Além disso, circula na internet um manifesto, que até ontem à noite contava com cerca de 3.800 assinaturas reivindicando a reabertura da mostra.

Curador da exposição, Gaudêncio Fidelis disse que se sentia ameaçado por postagens nas redes sociais, dada a proporção que o debate tomou. Curador de duas edições da Bienal do Mercosul (em 2005, como adjunto, e em 2010, como curador-geral), Fidelis afirma que a decisão do instituto abre um precedente perigoso:

— Acredito que nunca tivemos no período democrático o caso de toda uma exposição ser cancelada por questionamentos morais do seu conteúdo. Em dois, três dias, os grupos articulados para depreciar a mostra, ligados ao MBL (Movimento Brasil Livre) conseguiram criar uma narrativa totalmente deturpada das obras apresentadas, que viralizou rapidamente. O fato de a instituição ceder aos apelos desses grupos em vez de se colocar ao lado dos artistas aumenta a gravidade desse episódio. A partir de agora, qualquer grupo poderá se sentir no direito de dizer o que a arte deve ser, e o que as pessoas devem ver, escutar.

No domingo, o banco divulgou nota oficial justificando o fechamento, e nesta segunda, em mensagem aos clientes , lamentou que o conteúdo da exposição tenha sido considerado ofensivo “por algumas pessoas e grupos”. O MBL acusa “Queermuseum” de “desrespeitar símbolos, crenças e pessoas”. Em sua página no Facebook, o movimento alegou: “A mostra promove intolerância religiosa e tem uma postura intransigente. É o típico trabalho sujo feito para denegrir ainda mais os já marginalizados pela sociedade”.

As obras que provocaram mais indignação no grupo são “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva”, de Fernando Baril, “Travesti da lambada e deusa das águas”, de Bia Leite, que traz essa inscrição sobre a imagem de duas crianças, e “Cenas do interior II”, de 1994, de Adriana Varejão, que reúne pessoas e animais.

Adriana expressou, em nota, sua posição: “Esta é uma obra adulta feita para adultos. A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as chungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas. Não faço apologia a nada; como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas. É um aspecto do meu trabalho, a reflexão adulta.”

Fernando Cocchiarale, curador do Museu de Arte Moderna do Rio, disse ser lamentável que grupos possam ditar o conteúdo exibido numa instituição:

— O fato de obras de qualquer natureza estarem expostas não quer dizer que as pessoas sejam obrigadas a vê-las, ninguém precisa se defrontar com elas se não quiser. O debate está dentro dos objetivos da arte, desde que feito dentro dos limites da sociedade de direito. Afrontar a liberdade de expressão e criação é um retrocesso que não imaginávamos ver em uma sociedade desenvolvida.

Curadora da exposição da fotógrafa americana Nan Goldin no Museu de Arte Moderna em 2012 — após o Oi Futuro, onde a mostra seria realizada inicialmente, tê-la cancelado alegando que algumas imagens, ao envolver crianças, feriam o Estatuto da Criança e do Adolescente — Ligia Canongia também lamentou o episódio:

— A arte é um dos raros territórios em que o cidadão pode, ou deveria poder, se manifestar sem medo de opressões. Atos de censura não só demonstram um Brasil arcaico e preconceituoso, como alimentam o desrespeito e a ignorância.

“CENSURA EM ESTADO PURO”, DIZ PAULO SÉRGIO DUARTE

Um dos mais engajados artistas dos anos 1960 e 70, com obras censuradas pela ditadura, Antonio Manuel diz que não esperava se deparar novamente com “tamanho retrocesso”:

— É como no caso de “Repressão outra vez”, uma obra minha de 1968. Estamos testemunhando a volta dos julgamentos morais sobre a arte, que é maior do que toda essa mesquinharia.

O crítico e historiador de arte Paulo Sérgio Duarte classificou o episódio como “uma das mais graves ocorrências culturais negativas desde a redemocratização do país”:

— Trata-se de censura em estado puro acompanhada de ações políticas diretas que poderão imperar caso se multipliquem ações semelhantes e não houver ampla mobilização de todos os democratas contra esse fechamento da exposição.