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Em novo álbum, Arcade Fire mira o ‘conteúdo infinito’ de um mundo obcecado por consumo

‘Tudo está ficando cada vez mais bobo’, diz baterista da banda canadense
Indicado ao Oscar e vencedor do Grammy de melhor álbum, Arcade Fire deixou a cena indie para virar uma das maiores bandas do mundo Foto: Guy Aroch / Divulgação
Indicado ao Oscar e vencedor do Grammy de melhor álbum, Arcade Fire deixou a cena indie para virar uma das maiores bandas do mundo Foto: Guy Aroch / Divulgação

RIO — Todas as músicas que os integrantes do Arcade Fire já ouviram na vida estão tocando ao mesmo tempo. “É um absurdo”, espanta-se o vocalista Win Butler ao destacar o fato num verso de “Everything now”, a faixa-título do quinto álbum da banda canadense, lançado hoje. Entre um piano e cordas que fizeram pipocarem comparações com os suecos do Abba, os versos falam da obsessão por consumo imediato e excessivo de bens materiais, informação e cultura — incluindo música. “Agora temos tudo”, conclui.

Divulgado há quase um mês, o single antecipou um dos principais temas do disco: a necessidade por “conteúdo infinito” (“Infinite content” é, literalmente, o nome de duas canções). Depois de falar sobre questões pessoais e íntimas em “Funeral” (2004) e “The suburbs” (2010), o Arcade Fire volta a tópicos referentes ao mundo contemporâneo, como já havia acontecido no político “Neon Bible” (2006) e no engajado “Reflektor” (2013).

— Nos EUA, com a CNN, Fox News e outros canais, há um bombardeio de informações num nível em que não há mais notícia em si, e sim discussões sobre notícias e notícias sobre discussões, celebridades e fake news . Tudo está ficando cada vez mais bobo e, ao mesmo tempo, intenso — filosofa o baterista Jeremy Gara, em entrevista por telefone. — O álbum é apenas um registro deste contexto, no qual a música também se encaixa: é como se todo mundo quisesse reproduzir, todos os dias, todos os álbuns lançados durante todos os anos.

BEATS, HAITI E DISCO MUSIC

Ao longo de 16 anos em atividade, o Arcade Fire, hoje um sexteto, deixou o cenário indie para virar uma das maiores bandas de rock do mundo. Ganhou um Grammy de melhor álbum (“The suburbs”), foi indicado a um Oscar (pela trilha de “Ela”, de Spike Jonze), virou headliner em festivais (inclusive no Lollapalooza, no Brasil, em 2014) e, recentemente, assinou um contrato com uma grande gravadora (Columbia, subsidiária da Sony).

Cresceu também em termos sonoros, colhendo influências eletrônicas, dos ritmos caribenhos — a também vocalista Régine Chassagne tem ascendência haitiana — e da disco music. “Everything now” soa como o fruto dessa trajetória, trazendo a batida do ska e da marcha de rua, em “Peter Pan” e “Chemistry”, respectivamente, e os metais e sintetizadores dos anos 1970 e 80 em “Signs of life” e “Put your money on me”. Como efeito colateral, essa constante mutação tem irritado parte dos fãs, que a cada lançamento acusa a banda de ter perdido a sua identidade.

— O álbum é uma continuação de tudo o que coletamos ao longo dos anos, e somos orgulhosos disso — defende-se Gara. — Não é sombrio, nem apenas dançante. O engraçado é que deixamos essa mistura de influências e sons de propósito, pois tem a ver com a ideia de diversidade do “conteúdo infinito”, a ideia central do disco.

Para moldar a sonoridade atual, o Arcade Fire contou com a ajuda de dois nomes conhecidos da indústria: o francês Thomas Bangalter, uma das metades do Daft Punk, e o britânico Steve Mackey, baixista do Pulp.

— Em “Reflektor”, tivemos como produtor o James ( Murphy, líder do LCD Soundsystem ). Ele era perfeito para algumas canções, mas não servia para outras. Na banda, somos tantos compositores e temos tantas opiniões que é importante haver alguém para unir os elementos. O Pulp é uma das nossas bandas preferidas, e é natural confiarmos no Steve. Já Thomas é um cara superfilosófico, adora falar de história da música e o seu papel no mundo contemporâneo. Portanto, cada um contribuiu com conceitos diferentes, mas valiosos.

A pegada de “Everything now”, até agora, tem gerado uma recepção mista. Publicações como o “Independent” e “NME” deram nota máxima ao álbum, enquanto o “Consequence of sound” disse que o trabalho, pela primeira vez na carreira do grupo, “não tem substância”. A essa altura, no entanto, o hype gerado pelo lançamento deve ser pouco afetado pela crítica — a faixa-título chegou a liderar uma das paradas da Billboard, um feito inédito para o Arcade Fire.

APOSTA NAS 'FAKE NEWS'

Além disso, a banda tem investido em peso no marketing do trabalho. Entre as estratégias de promoção, está a bizarra criação de uma conta falsa e satírica nas redes sociais chamada Everything Now Corp, que se comporta como uma empresa capitalista que divulga produtos fictícios — como um cereal contendo metilfenidato, o princípio ativo da Ritalina —, além de espalhar boatos. Um deles foi o de que a banda estaria com uma dívida milionária por causa de um filme inacabado feito em parceria com o cineasta Terry Gilliam. O próprio diretor entrou na brincadeira e compartilhou, nas redes sociais, a “notícia”, republicada por jornais mundo afora — provocando erratas nos dias seguintes.

— Agora que somos uma banda popular, achamos que seria legal agir como uma grande corporação — ri o músico, antes de engatar uma reflexão passional sobre o comportamento dos usuários nas redes sociais. — O Twitter virou um antro de piadas, então entramos no clima. O engraçado é que muita gente se irrita quando você não fala sério com elas. Irritadas lendo o Twitter! Com um textinho escrito no seu celular! Não tem por que ficar nervoso. Mas acho que as pessoas estão começando a se dar conta do quão tolas as coisas estão ficando.

Os shows no Brasil ainda são incertos. Em dezembro, a turnê virá à América Latina, com passagens já confirmadas em Colômbia, Peru, Chile e Argentina. Se vier, Jeremy Gara diz esperar tocar pelo menos uma música significativa para os brasileiros, como fizeram em 2005, no Tim Festival, com “Aquarela do Brasil”, e em 2014, com “O morro não tem vez”:

— Não se preocupe, vamos fazer o dever de casa.