Meu amor, meu holograma
Cármen Lúcia e Gilmar Mendes colaboram para o pior dos males brasileiros: a desigualdade
Ao proferir seu tortuoso e envergonhado voto pelo direito de o Congresso dar a última palavra sobre a punição ou não a um de seus membros, a ministra Cármen Lúcia não estava sozinha. Com sua aparência de quem sabe fazer pão de ló sem olhar a receita, mas que jamais ouviu falar em Kaifeng, a presidente do STF contribuiu com seu empurrão para tornar o Brasil ainda mais desigual.
Não está sozinha porque em momentos anteriores outras autoridades também pisaram na garganta do progresso. Dom João distribuía títulos nobiliárquicos para comprar apoio político — Temer! D. Pedro II preferiu o jogo dúbio dos cafeicultores/senhores de escravos a optar pela Revolução Industrial. Avô e neto agiram como agora vota Cármen Lúcia: uma no cravo, outra na ferradura. O que chamam de conciliação é apenas subserviência aos seus.
Em menos de seis meses, foi a segunda mão do Judiciário em favor da contemporização. Gilmar Mendes lutou para não cassar a chapa Dilma-Temer, apesar das provas em contrário.
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Cármen Lúcia e Gilmar Mendes (ai, aquele beijo na testa) colaboram para o pior dos males brasileiros: a desigualdade.
Com seus votos, atos, e omissões, auxiliam a perpetrar cidadãos excepcionais, distintos da grande turba — os políticos.
O problema, no Brasil, não é ter uma elite. É ter uma elite que não pensa no Brasil. Mas só no seu compadrio. É uma elite que impede quem esteja fora de seu cenáculo de usufruir de seu bem-estar. Quem chega lá fecha a porta.
Cabe ao povo de Minas fazer com Aecim o que Cármen Lúcia não fez. Minas já lhe tirou a presidência, falta agora arrancar-lhe o mandato.
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Quis o destino que Cármen Lúcia proferisse seu voto — só as gemas ou vai clara também? — em momento quase sincrônico à premiação do Nobel aos físicos que constataram evidências reais das ondas gravitacionais.
A descoberta das ondas gravitacionais é espécie de atestado possível do chamado multiverso — ou: a existência de múltiplos universos. A energia do Big Bang não teria gerado apenas o universo visível, onde vivemos ao lado do Trump e do João Doria, mas sua energia, contínua, ainda estaria criando vários outros universos. Só que dissociados, que quase não se tocam — ou não se veem. E nós não seríamos únicos, mas diversos, havendo cópias e mais cópias de nós mesmos, numa infinidade de possibilidades. Assim, numa dessas outras realidades, Trump foi derrotado por Hillary, e João Doria desistiu do botox — e Crivella não nasceu.
Até há pouco o multiverso era privativo dos físicos teóricos. Os dois últimos Nobel de Física mudaram o jogo. Estamos no andar das evidências, por exemplo: já se aventa a explicação das dimensões existentes dentro de uma mesma sala; ou os diferentes tempos em convivência quase cinética. No multiverso existiriam outros tipos de lei, de funcionamento, de qualidades de matéria. Também por essas teorias, o homem nada mais seria do que espécie de holograma, tal um punhado de poeira cósmica, pura energia.
Eu não vou me estender no assunto para não assustar o Crivella e abalar sua fé. Longe de mim.
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Em “Blade runner 2049”, a paixão de Ryan Gosling, ou Agente K, é um holograma — a belíssima cubana Ana de Armas. O caçador de replicantes chega em casa, cansado, logo é recepcionado pela namorada, interessada em exibir seus novos modelos. Quando a pega em seus braços, e vai beijá-la, há uma interrupção de energia, e ela fica congelada, muda.
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Não sei o que a Paula Lavigne pensa disso, se é que pensa, mas o Agente K vive muito feliz com seu holograma. Não se ressente inclusive de não fazer sexo com ela. Há o desejo, a luxúria; o ato parece desnecessário. Basta sua companhia, sua atenção. Aqueles algoritmos o entendem, advinham seus desejos, é puro amor. Não o amor do Djavan, azulzinho, mas transcendente, de compreensão. A visão do holograma talvez seja algo machista. Ou não. Em todo o filme, é fato, há uma solidão atávica, imensa dirupção nos relacionamentos. Poderia ser uma boneca japonesa; é um holograma (no Brasil isso logo daria união estável).
Perpassa na narrativa do filme certa nostalgia por um tipo de amor, parece, soterrado pelas disfunções trazidas com o progresso e o aprofundamento das desigualdades, não apenas econômicas mas sociais. Ali, as instituições falharam, e os exércitos são criados em caráter voluntarioso. Tudo afasta. Cada qual defende seu interesse, sua corporação. É um mundo distópico — a elite é refém dela mesma.
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Num momento hamletiano, já no final do filme, o Agente K. quer que Deckard (Harrison Ford) diga qual era o nome de sua mulher (ai, Sean Young).
— Seu nome era Raquel.
— E por que vocês não ficaram juntos?
Responde Deckard:
— Às vezes, para amar, é melhor ficar anônimo.
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Antes que me perguntem: Kaifeng foi uma riquíssima metrópole chinesa no século XII; livros eram produzidos e vendidos bem baratos, todos tinham acesso. Até que em 1127 acabou invadida por tribos vindas da Manchúria. Quem eram? Mercenários convocados pelos próprios chineses para integrar seus exércitos. Isso que dá certos tipos de aliança.