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Resenha de 'O velho oeste carioca - volume II', de André Luis Mansur

 

 

O velho oeste carioca, volume II — Mais histórias da ocupação da Zona Oeste do Rio de Janeiro, de André Luis Mansur. Editora Íbis Libris, 106 páginas. R$ 30


Por Elias Fajardo *


O Centro, a Zona Sul e mesmo a Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro têm sido cantados em prosa e verso, mas a Zona Oeste não tem merecido a mesma atenção. Daí o interesse em torno do segundo volume desta obra do jornalista André Luis Mansur, que resgata parte do passado da região que vai de Deodoro a Sepetiba através de uma pesquisa bem realizada.


O autor recupera fatos e textos prosaicos em torno do cotidiano da época, como a cartilha que relaciona as obrigações dos condutores de veículos e que recomendava não só tratar com polidez os passageiros, mas também obrigava as carroças puxadas por cavalos a não dar fuga a criminosos, a não maltratar os animais e, principalmente, a “parar o veículo para dar passagem ao carro do Presidente da República, em qualquer ocasião”. Neste cenário vão surgindo personagens como o chefe da estação de trem de Campo Grande, que costumava dizer aos netos: “Hoje vamos brincar de liberdade!”. Eles paravam diante dos táxis estacionados e perguntavam aos motoristas: “Está livre?”. Se a resposta era positiva, o velho e seus netos gritavam: “Então, viva a liberdade!”

Numa obra como esta não poderia faltar o futebol, presente através de histórias do Bangu e do Campo Grande Atlético Clube. Entre os personagens podemos citar Dario, o Dadá Maravilha, jogador do Campo Grande que se notabilizou não só pelas suas jogadas, mas pelas frases de efeito, entre elas a seguinte: “Não me venham com a problemática, porque tenho a solucionática”. 

Foto (Foto: Arquivo)

Nos capítulos que tratam da chamada história oficial, destacam-se as peripécias da família real, que transformou a antiga sede da fazenda dos jesuítas em Santa Cruz num palácio de verão frequentado pelos imperadores e pela nobreza. O imperador D. Pedro I, por exemplo, quando criança organizava ali exércitos de meninos escravos armados com espadas de madeira para se divertir. Já adulto, indignado com uma carta que ofendia sua amante, a Marquesa dos Santos (e que havia sido escrita pelo próprio marido da Marquesa!), D. Pedro montou seu cavalo, atravessou a galope, numa madrugada de tempestade, a Estrada Real até a fazenda de Santa Cruz, onde, num gesto teatral, deu uma chicotada no rosto do marido da Marquesa.

Já a Princesa Isabel, filha de D. Pedro II, acompanhada de seu marido, o Conde D’Eu, também costumava frequentar Santa Cruz, onde organizava bailes e saraus. Aliás, o ensino de música na fazenda começou por volta do século XVII, ainda no tempo dos jesuítas, que criaram uma orquestra e um coro dedicados à música sacra. Os escravos mais talentosos praticavam até oito horas por dia, o que, de algum modo, os liberava dos trabalhos mais pesados. Os rapazes tocavam instrumentos e as moças cantavam. Neste cenário destacou-se o mulato padre José Maurício Nunes Garcia, que tocava cravo, compôs mais de 400 peças musicais sacras e profanas e teria sido um dos fundadores do conservatório de Santa Cruz. O compositor austríaco Sigismund Neukomm, discípulo de Haydn, que veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa de 1816, chegou a afirmar que não havia no mundo um improvisador como José Maurício.

Em toda a obra, há um tom nostálgico em torno de um passado que não volta mais, em que a água do mar e dos rios era limpa, a Mata Atlântica ainda não tinha sido dizimada, havia animais silvestres em abundância e o trem era um meio de transporte que deixou saudades. O antigo ramal de Mangaratiba, por exemplo, chegou até a ser homenageado por um xote pouco conhecido dos mestres Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, cuja letra dizia: “Adeus Alegre, Paquetá, adeus Guaíba/ Este fim de semana vai ser em Mangaratiba/ Lá tem banana, tem palmito e tem caqui./ E quando faz lua, tem violão e parati”.

O volume termina com um capítulo dedicado à artista visual inglesa Maria Graham, que foi preceptora da princesa brasileira Maria da Glória e, desejosa de ver de perto a natureza e a vida brasileiras, empreendeu em 1823 uma viagem à Zona Oeste, acompanhada por um pajem negro e um amigo inglês devidamente armado. Além de belos desenhos e aquarelas sobre a região, a inglesa deixou também minuciosas descrições em seu diário sobre a Fazenda dos Afonsos, onde se hospedou, que então empregava 180 escravos como lavradores e produzia açúcar e aguardente em abundância. Estas anotações deixam entrever a crueldade da escravatura: os fazendeiros preferiam contratar negros livres, pois no caso da morte de um deles na labuta da floresta, eram obrigados a pagar apenas uma pequena indenização. Já se morresse um escravo de propriedade de um dos próprios fazendeiros, o prejuízo era grande, pois um escravo valia muito naquela época. À noite, foi-lhe enviada uma escrava para lavar-lhe os pés, mas Maria Graham protestou dizendo “que nunca permitiria que ninguém me fizesse isso, ou me ajudasse a despir em qualquer tempo.”


* Elias Fajardo é jornalista e escritor, autor do romance “Ser tão menino” (7Letras)

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