Política

Especialistas em segurança pública afirmam que país deve priorizar combate à violência

Pesquisadores citam controle de armas de fogo e diminuição da desigualdade social
Sinais de confrontos no Complexo do Alemão Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Sinais de confrontos no Complexo do Alemão Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

RIO - Três pesquisadores em segurança pública escreveram artigos para explicar os motivos e possíveis soluções sobre os altos índices de homicídios no país. Para José Luiz Ratton, Ignacio Cano e César Barreira, o Brasil deve priorizar combate à violência numa agenda de ações efetivas, evitando o populismo e o punitivismo inócuo.

chamada - guerra do brasil

José Luiz Ratton , Coordenador do núcleo sobre Políticas de Segurança da UFPE:

A persistência escandalosa das elevadas taxas de mortalidade por homicídio no Brasil constitui evidente problema público que, a despeito da retórica de todos os governantes brasileiros dos últimos anos, nunca entrou de forma consistente no centro da agenda pública nacional.

No plano das respostas estatais, viceja o pensamento mágico. Em um extremo, os que querem “acabar com o crime” propondo soluções populistas e punitivistas; em outro, os que só concebem a queda da violência quando ocorrerem transformações estruturais da economia e da sociedade brasileira.

É certo que o controle da criminalidade em sociedades historicamente violentas não é problema de fácil solução: a violência é um fenômeno complexo e multidimensional que perpassa as práticas de todas as classes e grupos sociais, assim como as instituições que supostamente deveriam ser responsáveis pelo seu controle, além de atingir preferencialmente aqueles que já são destituídos de quase todos os direitos, os invisíveis de sempre.

Mas o que pode ser feito no curto e no médio prazo, para reduzir a violência que mata mais de 60 mil pessoas por ano no país, sem abrir mão do compromisso com a democracia, o Estado de Direito e a observância dos direitos fundamentais?

Olhar para experiências internacionais exitosas e baseadas em evidências pode ser um bom começo. Aprender com os acertos e erros do passado recente dos poucos estados brasileiros que iniciaram (e interromperam) políticas de redução da criminalidade violenta também pode ser de grande valia.

Mas precisamos de uma agenda mínima, inovadora e factível. Construir mecanismos eficientes de redução da violência policial; implementar, como prioridade das polícias, a prevenção e a investigação dos crimes contra a vida; controlar as armas de fogo de forma duradoura, diminuindo sua disponibilidade; desenvolver amplos programas de prevenção social da violência voltados para os mais vulneráveis à violência (aqueles que já se envolveram com atividade criminosa violenta e/ou já estiveram presos e seus familiares); reduzir drasticamente o encarceramento e humanizar as prisões; adotar políticas de drogas que protejam os que são atingidos pela violência sistêmica de alguns mercados de drogas são estratégias racionais e plausíveis.

A adoção de tais medidas ajudaria a criar um ambiente favorável para um ciclo sustentável de redução da criminalidade violenta no país, a ser garantido com incentivos econômicos em todos os níveis organizacionais comprometidos com tais mudanças.

Algumas medidas adicionais são fundamentais para garantir a realização de tal agenda: a participação da sociedade, a transparência da informação criminal, a avaliação contínua de todas os programas de redução da violência.

Para que isto seja possível, o envolvimento do governo federal na coordenação de uma estratégia nacional de segurança pública e a participação dos outros poderes é crucial, assim como a produção de mecanismos claros de financiamento do setor da segurança pública que definam as responsabilidades de municípios, estados e do governo federal.

Interromper a tragédia dos crimes contra a vida é condição necessária para a construção de uma sociedade menos injusta e menos desigual. Se abrirmos mão desta tarefa, não teremos país nenhum.

Ignacio Cano, Professor; membro do Laboratório de Análise da Violência da Uerj:

Desde os anos 1990, o Brasil convive com níveis dramáticos de homicídios que levaram a que, nos últimos anos, mais de 13% dos homicídios no mundo acontecessem em solo brasileiro. Esta epidemia de homicídios tirou a vida de mais de 61 mil brasileiros em 2015, segundo dados do Ministério da Saúde, e de outros 61 mil em 2016, de acordo com cifras do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Se o Brasil quiser resolver esta tragédia cotidiana, a primeira medida a ser tomada é enfrentá-la com a gravidade que merece, como um autêntico drama nacional, como um desafio cuja solução pode transformar o país como fez o fim da hiperinflação nos anos 1990. O governo Dilma acenou com o lançamento de um Plano Nacional contra os Homicídios, que nunca se concretizou. De fato, precisamos não apenas de um plano nacional, mas de planos estaduais e municipais, todos eles embasados em diagnósticos locais prévios que revelem as dinâmicas que conduzem ao homicídio.

As vítimas preferenciais de homicídio possuem um perfil preciso em termos de idade, gênero, cor, escolaridade e local de residência. São, basicamente, garotos negros de baixa escolaridade e moradores das periferias urbanas. Esse perfil de baixa renda e escassa visibilidade social não tem ajudado, num país tão desigual como o Brasil, a mobilizar a sociedade e o poder público para enfrentar o problema. Se a concentração do perfil das vítimas multiplica a tragédia para alguns grupos sociais, por outro lado oferece uma oportunidade alvissareira às políticas de prevenção, se elas forem bem focalizadas em grupos sociais e áreas de alta incidência.

A despeito da necessidade de diagnósticos locais, há vários elementos comuns que precisam ser abordados para reduzir os homicídios no cenário nacional. O primeiro é a necessidade de programas de prevenção social para estes jovens moradores de periferias, cujo efeito não é imediato, mas cujo sucesso em termos de inserção social é capital para conter a violência. O segundo ponto é a urgência de melhorar as taxas de esclarecimento de homicídios, hoje muito reduzidas na grande maioria dos estados brasileiros. Enquanto a grande maioria dos homicídios não resultar na punição de ninguém, será difícil obter resultados satisfatórios a curto prazo. O terceiro ponto é a importância de restringir a difusão de armas de fogo, responsáveis hoje por mais de 70% dos homicídios no país, na contramão das tentativas no Congresso Nacional para aprovar projetos que facilitem o acesso dos cidadãos às armas. O quarto elemento é a necessidade de repensar o modelo de policiamento ostensivo no país para diminuir os confrontos armados e para reduzir a letalidade policial, elevadíssima em alguns estados, que tornou a polícia brasileira uma das que mais mata e mais morre no mundo. O quinto ponto, talvez o mais desafiador, é como induzir os grupos criminosos para que eles operem com menores níveis de violência, dentro da estratégia que a literatura denomina focused deterrence (dissuasão focada, em tradução livre).

De qualquer forma, as intervenções para reduzir homicídios necessitam contar com metas explícitas e avaliações de impacto que orientem a política pública, ao invés de propor medidas baseadas em impressões pessoais ou em reações emocionais.

O Brasil não precisa continuar sendo o campeão mundial no número de homicídios. Mas, primeiro, precisa tomar vergonha desse lugar.

César Barreira , Coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC:

O século XXI tem apresentado sérios desafios na área da violência, tais como aumento de homicídios e consequente demanda na área de segurança pública. Vivemos também um momento de polarizações: ódio político e intolerância ao diferente. Narciso “acha feio o que não é espelho” e quer excluir o diferente, tanto social como fisicamente.

As intolerâncias se exacerbam no nosso cotidiano. Quando uma cor de pele, uma condição de gênero, uma opção política, uma religião ou forma de amor desencadeiam eliminações físicas, é sinal de que há algo mais do que simples violência.

Acrescenta-se à essa intolerância as resoluções radicais dos conflitos interpessoais, o tráfico de drogas e a circulação de armas de fogo na explicação das altas taxas de homicídio do Brasil. Taxas que alcançaram o patamar do insuportável e do intolerável.

Evidencio, no entanto, o fato de que o aumento da violência e das taxas de homicídio não pode ser explicado apenas pelo tráfico de drogas, como alguns porta-vozes dos órgãos de segurança tentam mostrar, pois o fenômeno se insere em um cenário mais amplo, circunscrito à ausência de uma política de segurança pública nacional, mais eficiente e estratégica.

Na simbiose entre arma, droga ilícita, resolução violenta dos conflitos e intolerância aos diferentes, os massacres constantes nas grandes cidades ampliam-se. São comuns mortes coletivas, sem qualquer investigação policial, que caem na vala comum de disputas no interior do tráfico de drogas.

As taxas de homicídios e de delitos contra o patrimônio são acompanhadas de intensa sensação de insegurança, pondo na ordem do dia o vivenciar de uma violência difusa. O termo “difuso” permite qualificar o fenômeno da violência na contemporaneidade, assumindo uma dimensão polifônica, direcionando para uma “sensação permanente de insegurança”, bem como para “diversos medos sociais”. O difuso configura o incontrolável e o imponderável.

O difuso medo social perfaz intransponíveis barreiras sociais, atingindo diretamente os princípios de cidadania. Os contornos de segurança são mais tênues e indefinidos, mesmo que não se negando a existência de “vítimas e lugares preferenciais” de práticas violentas.

A violência difusa e a sensação de insegurança que marcam as relações sociais na contemporaneidade portam novas práticas de sociabilidades, delimitadas por medo e sensação de insegurança. A violência está adestrando os comportamentos sociais, delimitando o que é possível e o impossível, o permitido e o negado, o proibido e o aceito socialmente.

Atualmente, configuram-se novas formas de homicídio, classificadas de “crueldades” que delimitam disputas entre facções, tendo como grande referência a afirmação de poder pela capacidade de produzir terror.

Um projeto voltado para intervir no controle dessas questões envolve pacto federativo entre União, estados e municípios, visando uma política nacional de segurança pública, definindo deveres e direitos, limites e possibilidades. Trata-se de pensar uma estratégia que consiga articular polícia comunitária com polícias especiais. Também política de segurança com políticas sociais. A diminuição da violência não pode ficar sob a responsabilidade exclusiva dos órgãos de segurança pública.