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Economia

Empresas envolvidas em desastres ambientais quitaram só 3,4% de R$ 785 milhões em multas

Estrutura deficiente dos orgãos reguladores e brechas na regulação estimulam impunidade, dizem especialistas

Ruinas do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, destruido pelo rompimento da barragem Fundão, da Samarco
Foto:
Márcia Foletto
Ruinas do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, destruido pelo rompimento da barragem Fundão, da Samarco Foto: Márcia Foletto

RIO - Os recentes desastres ambientais protagonizados pelas multinacionais Hydro Alunorte e Anglo American — pouco mais de dois anos depois de o país viver a maior tragédia ambiental na área de mineração com o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG) — expõem as dificuldades de órgãos reguladores para fiscalizar e punir empresas que despejam poluentes na natureza. Levantamento feito pelo GLOBO junto ao Ibama e às secretarias de Meio Ambiente estaduais mostra que, desde novembro de 2015, quando aconteceu o acidente de Mariana, foram aplicadas multas de R$ 784,9 milhões a essas três companhias, mas apenas 3,4% do valor foram pagos. Para especialistas, a estrutura deficiente dos órgãos reguladores, as brechas na regulação e a morosidade da Justiça contribuem para a impunidade dos responsáveis e não estimulam ações para evitar a reincidência.

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O pouco que foi pago veio da Samarco. Controlada pela Vale e pela australiana BHP, a empresa foi a mais multada no período. Foram 67 penalidades aplicadas pelo Ibama e pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, estados impactados pelo despejo de toneladas de rejeitos no Rio Doce com o rompimento de barragem que deixou 19 mortos. A empresa recorreu das multas e conseguiu anular cinco. Das 62 restantes, que somam R$ 535,9 milhões, só uma começou a ser paga. Com valor original de R$ 112,7 milhões (R$ 134 milhões em valores atuais), foi parcelada em 60 vezes. Segundo a Samarco, foram quitadas a entrada e nove parcelas, totalizando R$ 26,5 milhões.

Anglo e Hydro também recorreram de todos os autos de infração desde novembro de 2015 e nada pagaram até agora.

— Por que temos essa ineficiência? Parte da explicação está na precária estrutura dos órgãos ambientais para fazer a cobrança. Além disso, esgotadas as possibilidades de recursos administrativos, as empresas recorrem à Justiça, e aí esbarramos na morosidade do sistema Judiciário, que não é particularidade da esfera ambiental — avalia Fabricio Soler, sócio para a área de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Felsberg Advogados.

SAMARCO: ACORDO ADIADO QUATRO VEZES

Há três semanas, a Justiça prorrogou pela quarta vez o prazo para que a Samarco, suas controladoras e o Ministério Público Federal (MPF) fechem acordo para um plano de reparação. Enquanto a negociação não é concluída, as duas principais ações contra a empresa — uma movida pela União e pelos governos mineiro e capixaba, com pedido de um fundo de R$ 20 bilhões para reparação de danos, e outra do MPF, que pede R$ 155 bilhões — estão suspensas. Paralelamente, corre na Justiça processo criminal que acusa 22 executivos de Samarco, Vale, BHP e uma consultoria de homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).

A Samarco diz que o pedido de prorrogação foi aceito em razão da relevância e complexidade do tema. “Samarco, Vale e BHP reiteram o compromisso com comunidades e locais impactados pelo rompimento da barragem de Fundão e apoiam o trabalho conduzido pela Fundação Renova (criada para reparar danos)”.

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No caso da Anglo, foram 19 multas, somando R$ 227,9 milhões. A maior parte ligada aos dois vazamentos ocorridos em março no mineroduto de 529 quilômetros (o maior do mundo) que liga Conceição do Mato Dentro (MG) ao Porto do Açu, em São João da Barra (RJ). Foram lançadas no meio ambiente 965 toneladas de polpa de minério, mistura de água e minério de ferro, afetando o abastecimento de água de Santo Antônio do Grama (MG), onde ocorreram os vazamentos.

Apesar de a empresa afirmar que a substância não é tóxica, o Ibama lavrou cinco autos de infração (R$ 72 milhões), “por poluição que pode resultar em dano à saúde humana e poluição hídrica que torna necessária a interrupção da captação e do abastecimento de água”. Já o governo mineiro aplicou multa de R$ 125,6 milhões. Todas as outras penalidades impostas à Anglo pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas nos dois anos anteriores também se referem ao projeto Minas-Rio, idealizado pelo empresário Eike Batista e comprado pela Anglo. Entre as infrações estão captação de água acima da licença e morte de peixes por poluição de químicos. Nada foi pago até agora.

Segundo a Anglo, o mineroduto ficará paralisado até o fim do ano por causa dos vazamentos, o que provocará redução de até US$ 400 milhões na geração de caixa da empresa no país — cerca de 4% do resultado global de 2017. Quase 800 trabalhadores (cerca de 35% do projeto) estão em férias coletivas por 30 dias, período que será seguido de até cinco meses de layoff (contrato suspenso sem demissão). Mesmo assim, diz Rubens Fernandes, presidente da Anglo no Brasil, a empresa manteve planos de expansão.

— A gente foi pego de surpresa — admite o executivo, sem entrar em detalhes sobre as multas. — Não fugimos de obrigações legais.

Para o professor da Uerj Luiz Wanderley, que faz estudos na área de mineração, é preciso aumentar o rigor sobre os gestores das empresas que causam danos ambientais e estender a responsabilidade aos órgãos reguladores, que muitas vezes não fiscalizam ou concedem licenças frágeis. Na esfera administrativa, as multas costumam recair sobre as companhias. Já na esfera criminal, funcionários podem ser responsabilizados.

— O sucateamento dos órgãos ambientais é um problema central. Mas as falhas começam antes. Uma das hipóteses que explicam os desastres envolvendo a indústria extrativa é que estão ligados ao pós-boom de commodities, quando empresas tendem a reduzir gastos com segurança e meio ambiente — diz Wanderley.

Os preços das commodities começaram a subir em 2004, com avanço do crescimento da China, e passaram a recuar em 2011. Wanderley frisa que a arrecadação de estados e municípios depende de grandes empresas, o que leva autoridades e, às vezes, até a população a evitarem a adoção de medidas duras, temendo queda da receita com impostos e desemprego.

O caso da Hydro Alunorte, em Barcarena, no Pará, mostra quão ineficiente é a aplicação das multas. A companhia refina bauxita e a transforma em alumina para a produção de alumínio. Em 2009, quando a norueguesa Hydro ainda não era sua controladora, houve transbordamento de lama tóxica, que teria causado a morte de peixes e comprometimento do abastecimento de água. O Ibama aplicou R$ 17 milhões em multas na época, e a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, outros R$ 4,9 milhões, em valores atuais. Nada foi pago.

Em fevereiro, os dois órgãos voltaram a multar a empresa, num total de R$ 21 milhões, por problemas no licenciamento ambiental e nível elevado dos depósitos de rejeitos, após denúncias de despejo de poluentes em rios. Os ministérios públicos Estadual e Federal acusam a empresa de usar tubulação clandestina para descartar água não tratada. Ação da Procuradoria Geral do Pará pede R$ 150 milhões em ressarcimento por dano ambiental.

A Hydro Alunorte nega derramamento de rejeitos, mas admite que “foram identificadas algumas situações relativas ao descarte de águas de chuva, que foram comunicadas aos órgãos ambientais”. A empresa contesta laudo do Instituto Evandro Chagas que apontou substâncias tóxicas em rios próximos à sua refinaria, e diz que tem as licenças para operar ali. Ressaltou que, após as multas de 2009, “aumentou a capacidade do sistema de drenagem, melhorou o monitoramento da estação de tratamento de água e fortaleceu planos de preparação para emergências”.

PARA IBAMA, CONVERSÃO É A SAÍDA

Hoje, quem paga multas ambientais à vista tem 30% de desconto, mas o estímulo não é suficiente para que as empresas quitem seus débitos. De acordo com o Ibama, apenas 5% do valor das multas aplicadas são honradas, e o dinheiro vai para o caixa do Tesouro Nacional. A instituição lavra R$ 3 bilhões em autos de infração por ano, em média.

— A multa ambiental é quase uma ficção no Brasil — constata o procurador Ricardo Negri, integrante da força-tarefa que investiga o caso Hydro Alunorte.

Para o Ibama, o programa de conversão de multas em serviços ao meio ambiente, regulamentado em fevereiro, pode ser uma solução para as multas e uma oportunidade de o dinheiro ir de fato para ações ambientais. A empresa que aderir poderá obter redução de 35% a 60%, e os recursos serão convertidos em ações em prol da natureza. O prazo para adesão à primeira fase vai até julho, e os recursos vão para a recuperação das bacias hidrográficas de São Francisco e Parnaíba.

A Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais tem iniciativa semelhante. Acertou com Ministério Público e Justiça estadual no mês passado convênio que prevê conversão de multas não pagas em melhorias ambientais. Do passivo de R$ 1,5 bilhão, cerca de R$ 690 milhões podem ter essa solução. Sobre essa alternativa para quitar multas, a Anglo disse que “vai avaliar todas as opções previstas pela legislação”. Já a Samarco argumentou que “há aspectos técnicos e jurídicos nas decisões (das multas) que precisam ser reavaliados”. A Hydro Alunorte não opinou.