Empresa
Esse brasileiro fez da reciclagem sua missão de vida
Ao transformar coletes salva-vidas usados por refugiados em acessórios e roupas, Thami Schweichler, de 33 anos, serve de paradigma da nova tendência dos negócios
5 min de leituraCentenas de milhares de salva-vidas já foram recolhidos no litoral grego. Usados por pessoas em fuga pelo Mar Mediterrâneo, viraram símbolos de uma tragédia humanitária: o deslocamento em massa provocado pela guerra civil na Síria e por instabilidade social em outras áreas da Ásia e da África.
Parte desses coletes vem trilhando um caminho inesperado. Sob a forma de bolsas e cases para notebooks, vão parar em museus, desfiles e ensaios de moda — e ajudam a melhorar a vida de refugiados. A transformação passa pelas mãos do designer brasileiro Thami Schweichler, de 33 anos, nascido em São Paulo, hoje vivendo e empreendendo em Amsterdã.
O projeto é recente, mas já provoca impacto e ganha reconhecimento. No ano passado, Thami foi incluído na lista 100 Jovens Pioneiros da Sustentabilidade na Holanda, feita pela ONG DJ100, com apoio do governo e do grupo ABN Amro. O designer fundou a empresa social Makers Unite em abril de 2016. Trata-se de um estúdio de design com um programa de integração profissional para refugiados recém-chegados.
“A maior parte dos problemas sociais na Holanda está ligada a imigrantes que vieram no pós-guerra para reconstruir o país mas nunca foram convidados a integrar a sociedade holandesa”, diz Thami. “O sistema falhou e a história se repete agora. Essas pessoas muitas vezes são mostradas como dependentes, mas a guerra não tirou delas o talento nem a capacidade produtiva.”
Descobrir, valorizar e direcionar essa capacidade é o objetivo do treinamento de boas-vindas da Makers. Dura seis semanas. Em grupos de oito a doze pessoas, os refugiados recebem aulas de holandês e inglês, dicas culturais, elaboração de currículo e plano de carreira. Uma “terapia ocupacional”, que ocupa um quinto da jornada, ocorre em torno de uma mesa de trabalho. Naquela área, salva-vidas destrinchados se encontram com linhas, tesouras e criatividade.
A empresa fica no Bijlmerbajes, um presídio desativado no leste da capital holandesa e ocupado por outros empreendedores sociais. Pela oficina da Makers já passaram 136 refugiados, inclusive a artista plástica Yara, uma jovem síria formada em Belas Artes pela Universidade de Damasco. Ela desenhou a bandeira da Nação dos Refugiados usada no desfile de abertura da Olimpíada no Rio, em 2016. A bandeira foi confeccionada com os coletes laranja como parte de um conceito também criado por mentes brasileiras, entre os quais o publicitário Rodrigo Moran, em Nova York.
A história de Yara e de outros artistas expulsos pela guerra está contada no site da Makers Unite numa página de classificados, com foto, pequena biografia e link para os portfólios pessoais. Entre os “makers” há profissionais com formação já adequada para o trabalho, como designers, arquitetos, artistas e engenheiros. Há também pessoas com outras formações, como professores e advogados, que agora se reinventam. “Entre em contato com eles para uma oportunidade”, convida o texto de apresentação — sugerindo que, nesse encontro, existe uma oportunidade de descoberta também para quem contrata.
A Makers ainda é pequena. Captou pouco mais de € 400 mil de três fundos de investimento social e deve superar a marca de € 300 mil em vendas este ano. Mas vem garantindo sua autonomia e sustentabilidade, graças a parcerias. A Ben & Jerry’s se tornou patrocinadora de uma linha de estampas para camisetas, cobertores e cumbucas.
Com o estilista holandês Bas Kosters, os coletes ganharam a forma de uma bolsa robô vista na Semana do Design Holandês, na capa da revista de moda Vogue e em destaque na loja do moderno museu Tropen, em Amsterdã. Tommy Hilfiger encomendou 50 cases de laptop. A loja do Victoria&Albert Museum em Londres também vende os artigos, mas o principal canal de vendas, com entrega no mundo todo, é o site.
Desde a adolescência, Thami tinha uma boa ideia do que tentaria fazer como profissional. “Eu queria trabalhar com design e com um propósito social”, afirma. Formou-se em desenho industrial na Unesp, em Bauru (SP). Filho de uma holandesa e um brasileiro, recebeu cedo o estímulo para se tornar um profissional global.
Especializou-se em design social na França e fez estágio no Canadá. Em 2012, foi viver na Holanda. Logo tomou parte de um projeto iluminador. Trabalhou na empresa social Kibo, cuja missão era criar oportunidades de negócios e cadeias de produção no Quênia. Gostou. “Isso foi fundamental para eu entender o empreendedorismo social”, conta. “Mas eu ainda ficava um tanto frustrado por não trabalhar diretamente com pessoas beneficiadas pelo trabalho.”
Na etapa final de sua formação como empreendedor social, foi voluntário na The Beach, organização que trabalha com refugiados em Amsterdã. Uma das parceiras era a ONG grega Odyssey, que recolhia os coletes abandonados nas praias. Diante de uma caixa de coletes laranja, Thami quis saber o que aqueles objetos significavam para os refugiados. Fez um levantamento informal de opiniões.
“Esperança” foi a palavra mais repetida. E para os holandeses? “Diretos como são, responderam de pronto ‘nada, mas tem a cor da Holanda’”, conta. A coincidência era boa demais para desperdiçar. Em 27 de abril de 2016, dia do aniversário do rei — quando os holandeses tradicionalmente saem às ruas vestidos de laranja para festejar —, Thami apresentou a Makers ao público.
No dia em que recebeu Época NEGÓCIOS, parte da equipe multicultural de 12 pessoas trabalhava na próxima novidade: uma bolsa de pano reciclado e reversível que conta a história do alfaiate Ramzi Aloker. O palestino fugiu da Síria e, após um ano na Holanda, conseguiu se integrar ao competitivo mercado de moda em Amsterdã. Virou referência importante para os refugiados que chegam e para os que ainda lidam com memórias fortes diante de um colete.
Gente como o advogado sírio Moutasem Alawad, de 38 anos, tem histórias de pesadelos para compartilhar. Ele chegou à Holanda em 2015, na segunda tentativa de cruzar o Mediterrâneo de barco. Na primeira, o motor quebrou e o grupo dependeu de muitas mãos aflitas remando de volta para o ponto de partida, porque o barco grande tinha apenas dois remos.
Na segunda, a travessia da Turquia para a Grécia demorou uma hora, mas num barco pequeno e superlotado com 65 pessoas. “Foi uma hora ouvindo pessoas em pânico, crianças chorando.” Ele deixava para trás a mulher e a filha de 1 ano, que reencontraria 15 meses depois. “Eu precisava fazer algo. Precisava protegê-las. Tive de vir primeiro. Não foi fácil tomar essa decisão, mas vivíamos em total insegurança”, diz. Alawad ainda precisa dominar a língua de seu novo país. Prevê pelo menos mais dois anos de estudo de holandês.
Em cinco anos, a Holanda recebeu quase 170 mil pedidos de asilo, sobretudo de sírios e afegãos, segundo estatísticas do Ministério da Justiça local. A Holanda criou dezenas de abrigos para refugiados, alguns com capacidade ociosa no momento, devido ao declínio do número de pessoas chegando, mas o tema continua sendo um desafio e explorado por radicais dispostos a espalhar a xenofobia. Thami sabe que o problema se espalha rapidamente. “Minha ideia é criar oportunidades para refugiados no mundo todo. Isso constrói uma rede de pessoas que acreditam num mundo melhor. Quero replicar este conceito: produzir une.”
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