Cultura

Funcionários da prefeitura fazem vistoria na Bienal do Livro em busca de 'material impróprio'

Evento entra com mandado de segurança preventivo; ação, que não apreendeu obras e gerou protestos das editoras, ocorre após Crivella mandar recolher HQ com beijo gay
Wolney Dias, da Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura do Rio, comanda vistoria de livros na Bienal Foto: Gabriel Paiva / O Globo
Wolney Dias, da Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura do Rio, comanda vistoria de livros na Bienal Foto: Gabriel Paiva / O Globo

RIO - No início da tarde desta sexta-feira (6), 12 funcionários da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) chegaram à Bienal do Livro, que está sendo realizada no Riocentro, para identificar e lacrar livros considerados "impróprios". A operação, que aconteceu após o prefeito Marcelo Crivella mandar recolher HQ com beijo entre dois homens, durou até 14h e não apreeendeu nenhuma obra.

Em nota divulgada após o encerramento da ação, a Bienal do livro informou que entrou "com pedido de mandado de segurança preventivo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (...) a fim de garantir o pleno funcionamento do evento e o direito dos expositores de comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas – como prevê a legislação brasileira".

'Em busca de material pornográfico'

Segundo Wolney Dias, subsecretário operacional da Seop, que comandava a operação, trata-se de "uma vistoria em busca de material pornográfico".

— A prefeitura tem poder de polícia para isso — disse Wolney à imprensa presente no local. — Se o material não estiver seguindo as recomendações, ele será recolhido. Estamos seguindo a orientação da procuradoria da prefeitura. Eu não entendo que haja censura. Se for material pornográfico, oferecido sem as normas, será recolhido.

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A operação se dividiu em três grupos, que percorreram os três pavilhões da Bienal cercados de jornalistas e de curiosos, movimentação que atrapalhou um pouco a movimentação nos corredores lotados. As ações acompanhadas pela reportagem foram rápidas, com funcionários da Seop passando pelos estandes, olhando alguns livros por alto (durante toda a operação, Wolney pegou um único livro). Os agentes concentraram-se nas caixas de saldos, onde são vendidas HQs como "Vingadores: A cruzada das crianças".

Na quinta (5), o prefeito Marcelo Crivella determinou "que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores". Crivella referiu-se especificamente a "Vingadores: A cruzada das crianças", HQ de super-heróis da Marvel em que dois personagens masculinos aparecem se beijando em um painel. Nesta sexta, ameaçou cancelar o evento caso a obra, que já se esgotou , não esteja lacrada.

SEOP: 'Nenhum material em desacordo'

Na tarde de sexta, a Seop divulgou uma nota dizendo que vistoria pelos 150 estandes do evento "não encontrou material em desacordo às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente". O documento prossegue: "Não foram encontrados exemplares da publicação Vingadores: A Cruzada das Crianças, objeto de denúncias de frequentadores da mostra. Na véspera, a Seop notificou a organização do evento a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do ECA, que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes."

Os vereadores Tarcísio Motta e Renato Cinco, do PSOL, entraram com representação junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para que seja aberta investigação sobre a atuação da Prefeitura na Bienal nesta sexta-feira. Para os parlamentares, a atuação da Seop, "tem indícios de improbidade administrativa, censura prévia e violação do direito à liberdade expressão".

Reações à ação da prefeitura

O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) divulgou também uma nota na qual "repudia toda e qualquer forma de censura e restrições à livre manifestação cultural". Os editores dizem ter recebido "com indignação a tentativa de restringir a venda de alguns livros e revistas durante a XIX Bienal Internacional do Livro Rio, evento que é, há 38 anos anos, uma das mais importantes manifestações culturais do país, promovendo a leitura, debate e a construção de uma sociedade justa e democrática". O texto conclui: "Para haver democracia é imprescindível o diálogo, tolerância e o respeito à produção intelectual dos editores e autores em nosso país."

A Câmara Brasileira do Livro também se manifestou com um comunicado: "Em virtude dos recentes acontecimentos na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, a Câmara Brasileira do Livro vem manifestar seu repúdio a todo e qualquer ato de censura e reiterar seu total apoio ao evento. A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais para a democracia, e é importante cultivá-la e defendê-la, zelando por sua integridade porque se trata de direito assegurado a todos, independente de opinião, crença ou posicionamentos políticos. É na riqueza dos debates e na pluralidade de ideias que a humanidade tem evoluído ao longo destes anos e o livro tem sido fiel escudeiro nesta jornada. Vida longa a todos os eventos literários do Brasil!

Alguns expositores da Bienal e nomes do setor de quadrinhos se manifestaram contra a vistoria da SEOP:

A Companhia das Letras exaltou e apoiou "a posição da Bienal pela liberdade de expressão":

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Diante da censura feita por Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, ao quadrinho “Vingadores: A Cruzada das Crianças” e da fiscalização para identificar livros considerados “impróprios” na Bienal do Livro Rio, a Companhia das Letras manifesta seu repúdio a todo e qualquer ato de censura e se posiciona, mais uma vez, à favor da liberdade de expressão. “Ficamos orgulhosos com a posição da organização da Bienal do Rio em defesa da liberdade de expressão e da diversidade. Ela mostra com dignidade a vocação e vontade dos editores. Posturas como a do prefeito Marcelo Crivella e do governador João Doria – que recentemente mandou recolher uma apostila escolar que falava sobre diversidade sexual – tentam colocar a sociedade brasileira em tempos medievais, quando as pessoas não tinham a liberdade de expressar suas identidades. Eles desprezam valores fundamentais da sociedade e tentam impedir o acesso à informação séria, que habilita os jovens a entrar na fase adulta mais preparados para uma vida feliz. Essas medidas, mais a suspensão do edital que daria apoio a produção de filmes LGBTQ+ por parte do governo federal, indicam uma perigosa ascensão do clima de censura no país – flagrantemente inconstitucional – e que traz a marca de um indesejável sentimento de intolerância discriminatória”, diz Luiz Schwarcz, CEO e fundador da Companhia das Letras #leiacomorgulho

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A editora Todavia repudiou "qualquer ato de censura":

A Record ponderou: esconder um tema não o faz desaparecer.

Para a Intrínseca, não há livro nem amor impróprio.

O curador da exposição "Batman 80 anos", em cartaz em São Paulo, também se manifestou: