Cultura

Crivella manda recolher HQ dos Vingadores com beijo gay; Bienal se recusa

Prefeito disse estar 'protegendo os menores da nossa cidade'; advogada diz que decisão é 'censura'
painel da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução
painel da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução

RIO — O prefeito Marcelo Crivella determinou que a história em quadrinhos "Vingadores: A cruzada das crianças" fosse recolhida da Bienal do Livro, no Riocentro. Em um vídeo publicado nas redes sociais, o prefeito afirma que a HQ de super-heróis tem "conteúdo sexual para menores". Dois dos personagens da saga são namorados e aparecem se beijando em um painel - o livro tem 264 páginas. No vídeo, Crivella diz: "Portanto, a prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade."

Trecho da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução
Trecho da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução

A Bienal se recusou a atender o pedido da prefeitura - que, aparentemente, nem poderia ser atendido. Na manhã desta sexta (6), a reportagem do GLOBO visitou nove estandes que comercializam quadrinhos na Bienal. Em oito, ouviu que "Vingadores: A cruzada das crianças" não estava à venda simplesmente porque não fazia parte do estoque. Em um, chamado Taverna do Rei, um funcionário confirmou que havia cerca de 20 exemplares à venda, mas que se esgotaram há dois dias, antes da manifestação do prefeito.

"Vingadores: A cruzada das crianças" é o 66º volume da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel, lançado no Brasil em 2016 pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics. A série republica gibis em formato de luxo, com capa dura. A história foi publicada originalmente nos EUA entre 2010 e 2012, chegando ao Brasil pela primeira vez em 2012.

A saga, que originalmente durou nove edições mensais, envolve dezenas de heróis da Marvel, incluindo dois membros dos Jovens Vingadores, Wiccano e Hulkling, que são namorados. Eles aparecem se beijando em um painel de uma edição escrita pelo americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.

Heinberg tem uma carreira consagrada como roteirista de TV, tendo créditos em séries de sucesso como "Party of five", "Sex and the City", "Gilmore girls", "Gray's anatomy" e "Scandal". No mundo dos quadrinhos, seu grande feito é a criação justamente dos Jovens Vingadores (Young Avengers, no original) e do casal formado por Wiccano e Hulkling - o autor assumiu-se gay publicamente. Seu sucesso na telinha e nos quadrinhos o levou fazer o roteiro do filme "Mulher-Maravilha" (2017).

Trecho da revista 'Vingadores, a cruzada das crianças' Foto: Reprodução
Trecho da revista 'Vingadores, a cruzada das crianças' Foto: Reprodução

Bienal: "Voz a todos os públicos"

Procurada, a Bienal afirmou que "dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor."

Em nota, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) afirmou que "notificou, na tarde desta quinta-feira (5), a organização da Bienal do Livro a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) , que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes. Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ainda ter a licença cassada." Também na tarde desta quinta-feira, um grupo de guardas municipais foi à Bienal com o objetivo de recolher os livros. Os agentes foram recebidos pela direção do evento e, após uma conversa, saíram sem cumprir seu objetivo.

Livro "Vingadores, A cruzada das crianças" Foto: Reprodução
Livro "Vingadores, A cruzada das crianças" Foto: Reprodução

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Na verdade, a Seop se refere aos artigos 78 e 79 do ECA. O Artigo 78 diz que revistas e publicações com material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes devem ser comercializados em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo. O estatuto também prevê que as editoras devem cuidar para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.

O Artigo 79, por sua vez, diz que “revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.”

Especialistas dizem que há censura

Para Deborah Sztajnberg, advogada especializada em direito autoral e autora do livro "Cala boca já morreu: a censura judicial das biografias", a atitude do prefeito pode ser considerada como censura:

— Quero crer que a Constituição ainda seja válida. Lá diz, textualmente, que acabou censura no Brasil — afirmou a advogada. — Uma decisão como essa precisa ser tomada por via judicial ou por decreto, mas de toda a forma é totalmente equivocada. É censura. O prefeito governa para uma cidade inteira, e não para uma parcela da população que compactua das crenças dele.

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Cristina Costa, professora de Comunicação e Cultura da ECA-USP e especialista em censura, classifica o caso como um ato contra a liberdade de expressão:

— Uma professora pode proibir palavrão dentro da sala de aula, porque ela é a autoridade dentro daquele circuito. Já a censura normalmente tem caráter político e parte de uma autoridade usando seu poder para inibir a livre circulação de um produto cultural e artístico.

Trecho da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução
Trecho da HQ "Vingadores: A cruzada das crianças" Foto: Reprodução

Vereador diz que livro é 'covardia contra as crianças'

Ainda na quarta-feira (4), no plenário da Câmara Municipal, o vereador Alexandre Isquierdo (DEM) reclamou da comercialização do livro na Bienal. Empunhando o livro na tribuna, ele afirmou que seu ato não era homofóbico:

— O autor, que é assumidadamente gay, coloca dois super-heróis se beijando e tendo relação homossexual. Não dá para admitir covardia contra as nossas crianças. Propagação e divulgação homossexual para as crianças. Os pais estão comprando achando que é um livro infantil. Cada um faz o que quiser da sua vida. Agora, descer goela abaixo das nossas crianças é coisa de bandido e covarde. Estou apresentando uma moção de repúdio — afirmou o vereador.