Casas com três andares na favela: crescimento da comunidade nos últimos anos foi basicamente vertical Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

Com volta da violência, velhos problemas reaparecem, mas Vidigal continua uma favela cobiçada no Rio

Imobiliária que alega ser dona de parte da comunidade foi à Justiça pedir indenização ao governo do estado

por Rafael Galdo

RIO - A ruína das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) freou o ímpeto de crescimento do Vidigal. A especulação imobiliária arrefeceu, o turismo não lucra mais tanto assim, mas as consequências do boom na última década continuam evidentes. A população, segundo cálculos da associação de moradores, dobrou: de 9.677, no censo de 2010 do IBGE, para uma estimativa de ao menos 20 mil pessoas atualmente. Só hostels são 32, alguns bem mais vazios do que pouco tempo atrás.

E agora que a violência recuperou territórios, convive-se com o ônus do crescimento, sem que o estado tenha aproveitado a oportunidade para melhorar a infraestrutura — as últimas obras de urbanização foram as do Favela-Bairro, em meados dos anos 1990. Nem por isso, no entanto, a região deixou de ser um pedaço cobiçado da cidade, como mostra uma decisão recente da Justiça que surpreendeu até as lideranças comunitárias locais.

Briga judicial atual e resistência antiga

PMs da UPP Vidigal fazem patrulhamento na localidade do Quatorze, perto de capela do Papa - Marcelo Regua / Agência O Globo

Na semana passada, a 15ª Vara de Fazenda Pública negou um pedido de indenização de R$ 41,4 milhões da Jardim Vidigal Imobiliária, que alega ser a dona de 203 mil metros quadrados na favela. A empresa processa o governo fluminense por ter desistido de desapropriar as terras. Em 2007, um decreto do ex-governador Sérgio Cabral revogou uma decisão de 1986, do então governador Leonel Brizola, que declarava os lotes como área de interesse social.

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Os apelidos que guiam os moradores pelo Vidigal

‘Pela localização entre o Leblon e São Conrado, sempre estivemos ameaçados de remoção. O perigo maior veio em 1977, quando recebemos avisos para colocarmos nossos móveis na Avenida Niemeyer’

- Paulo Roberto Muniz Morador do Vidigal

Mais de três décadas atrás, os planos eram promover a regularização fundiária da comunidade, o que nunca se concretizou por completo. A imobiliária, então, arguiu que “se deixou que os posseiros” permanecessem e “expandissem suas moradias irregulares”, inutilizando “por completo” a propriedade. Por outro lado, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) argumentou que a área já estava ocupada antes de 1986, que a posse nunca foi, efetivamente, transferida ao governo do estado e “que os lotes estavam hipotecados judicialmente à Cedae para assegurar o pagamento de dívidas da imobiliária”.

Sequer o atual presidente da associação dos moradores, Sebastião Aleluia, tinha conhecimento dessa disputa envolvendo o Vidigal. Paulo Roberto Muniz, antigo morador que nos anos 1970 esteve à frente do movimento que impediu a remoção da favela, lembra que o novo imbróglio se dá às vésperas do aniversário de 38 anos da visita do Papa João Paulo II à comunidade, em 2 de julho de 1980. A presença ilustre foi a coroação da luta contra a retirada dos moradores, na qual a Pastoral de Favelas teve participação crucial.

— Pela localização entre o Leblon e São Conrado, sempre estivemos ameaçados de remoção. O perigo maior veio em 1977, quando recebemos avisos para colocarmos nossos móveis na Avenida Niemeyer. Seríamos transferidos em caminhões de lixo para Antares, em Santa Cruz. A pastoral entrou em cena e nos ajudou. Quando soubemos da vinda de João Paulo II ao Rio, fomos a dom Eugenio Sales ( arcebispo do Rio na época ) para sugerir a visita ao Vidigal. Era o maior título de propriedade que poderíamos ter. Quem despejaria a favela do Papa? — conta Paulo Roberto.

Vidigal: uma comunidade em metamorfose constante

  • Turistas apreciam vista do Vidigal em hotel no alto do morro Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

  • André Gosi, Bárbara Nascimento e Sebastião Aleluia (da esquerda para a direita): lideranças comunitárias da favela, eles relatam os dilemas atuais de uma comunidade que é símbolo de resistência Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

  • Projeto da associação de moradores prevê instalar placas com a memória do Vidigal nas ruas e becos da favela Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

  • Paulo Roberto Muniz na capela construída para receber o Papa João Paulo II, em 1980: morador esteve à frente de movimento que evitou a remoção da comunidade Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

  • PMs da UPP Vidigal fazem patrulhamento na localidade do Quatorze, perto de capela do Papa Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

  • Casas com três andares na favela: crescimento da comunidade nos últimos anos foi basicamente vertical Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

Aquela tentativa de remoção atingiria exatamente o primeiro trecho ocupado na favela, a localidade conhecida como Quatorze, às margens da Niemeyer. Falava-se que era uma área de risco. Mas descobriu-se que o intuito, na verdade, era construir um hotel de luxo. História que rendeu ao prefeito da época, Marcos Tamoyo, o apelido, entre os moradores, de “Marcos Tramoia”.

Em vez de hospedagens com vista para o mar, o lugar ganhou uma igreja, a Capela São Francisco de Assis, para receber o Papa. E quando o Pontífice chegou, deixou de presente o próprio anel, até hoje na favela. Só que, anos mais tarde, as atenções se deslocariam do Quatorze para outros trechos.

Favela com fama internacional

Rio de Janeiro 28/06/2018 völtima disputa envolvendo o Vidigal: uma imobiliv°ria que perdeu na Justivßa um pedido de indenizavßv£o em relavßv£o a parte da comunidade. Foto Marcelo Regua / Agencia O Globo - Marcelo Regua / Agência O Globo

Entre as décadas de 1970 e 1980, conta a professora Bárbara Nascimento, moradora da favela e mestranda em memória social centrada no morro, o bar Barraco tinha fila para entrar. Já os bailes do Alfredo, no extinto Clube Águia, eram disputados pelos amantes da black music . E, em 1986, foi criado o grupo Nós do Morro, que revelaria centenas de talentos das artes.

‘As pessoas queriam morar no Vidigal. Não era mais a remoção, mas a gentrificação que nos ameaçava. Os aluguéis dispararam’

- André Glosi Diretor Cultural da Associaçaõ de Moradores

O Vidigal ganhava a fama de “favela chique” e “favela dos artistas”, mesmo com muitos moradores vivendo abaixo da linha da pobreza e com o terror imposto pelo tráfico de drogas. Até que, em 2009, o alemão Rolf Glaser comprou casas na comunidade, com intuito de transformá-la em polo turístico. Os negócios não deram certo , mas logo surgiram albergues como o Casa Alto Vidigal, no Arvrão, no topo da favela, lugar de desova, uma das áreas mais pobres e perigosas do morro.

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O novo ciclo se confirmaria com a instalação da UPP, em janeiro de 2012. Os interesses de investidores e turistas subiram de vez para o entorno do Arvrão. A favela passou a ser considerada um modelo da UPP que deu certo. Foram criados points como o Mirante do Arvrão, o Bar da Lage e o hotel do arquiteto Hélio Pellegrino. A trilha do Morro Dois Irmãos se tornou cartão-postal do Rio. O Vidigal virou febre entre os gringos. Havia boatos da construção, inclusive, de um condomínio no alto da favela. Quem chegava para viver no morro ganhava uma espécie de novo gentílico: “Vidigalizados”.

— As pessoas queriam morar no Vidigal. Não era mais a remoção, mas a gentrificação que nos ameaçava. Os aluguéis dispararam. Aparecia gente com R$ 80 mil, R$ 100 mil para comprar os barracos. Para o pobre, parecia muito. Mas esse dinheiro só comprava casas em outras favelas distantes. Criamos até um projeto para debatermos essas vendas. Os preços, então, passaram dos R$ 400 mil — conta André Gosi, diretor cultural da associação de moradores.

Demanda por serviços

Pedro Paduano Procópio, 52 anos, teve a casa invadida pela lama num deslizamento de terra no Vidigal em março deste ano - Márcio Alves / Agência O Globo

O castelo de cartas começou a vir abaixo com a derrocada da UPP. Bárbara aponta um marco para a mudança de rumos: 23 de julho de 2017, quando o PM Hudson Silva de Araújo foi morto a tiros na favela.

— Os turistas continuam vindo, mas em quantidade menor, sem circular tanto pelos becos. Acho que, depois que a UPP fez água, a favela voltou a ser dos favelados — diz ela.

Com o tráfico à vista, o alto do morro voltou a ser área de risco, assim como a localidade da Pedrinha. Em termos de infraestrutura, uma das principais reivindicações é a instalação de uma Clínica da Família, já que o posto de saúde está sobrecarregado. As tubulações de esgoto não dão mais vazão. E o trânsito virou grande problema, afirma Sebastião Aleluia.

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Bando que tentou retomar o Vidigal é suspeito de matar antigo aliado

A expansão dos últimos anos, diz o presidente da associação, foi basicamente vertical. Como comprovam dados do Instituto Pereira Passos (IPP), de 2004 a 2016 a área da favela pouco mudou: passou de 294,6 mil para 294,8 mil metros quadrados. Mas houve construções irregulares em áreas de mata. O líder comunitário conta que a favela tinha único fiscal do Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso) da prefeitura. O servidor era o responsável, sozinho, pelas fiscalizações no Vidigal e no Pavão-Pavãozinho. O que piorou na gestão do prefeito Marcelo Crivella.

— Nem com esse braço do município contamos mais. Se surge uma construção em área de risco, tento orientar o morador. Mas não há muito o que eu possa fazer — diz Aleluia.

Pela lei, o gabarito máximo permitido no Vidigal é de três pavimentos. Novas construções, exceto as de iniciativa do poder público, estão vedadas. Reformas e reconstruções só podem ocorrem em edificações existentes antes de 1998. O problema é ter quem inspecione as obras dos “vidigalizados” e as dos antigos moradores.

Já parte dos que resistiram à remoção dos anos 1970 recebeu recentemente a titularidade de suas terras, em trabalho do Instituto de Terras e Cartografia do Estado (Iterj). O órgão não informou quantos imóveis foram regularizados. Mas Diogo Rossi, sócio da Jardim Vidigal Imobiliária, estima ter chegado a 30% do total. Após ter o pedido de indenização negado pela Justiça, a empresa estuda propor uma regularização fundiária com a participação dela própria.

— Achamos importante que as pessoas tenham segurança jurídica para suas residências. O modelo já usado em outros estados. Em linhas gerais, os moradores pagam uma taxa para a regularização. Quem tiver interesse, adere. Parte dos recursos pagos é revertida em benfeitorias no bairro — diz Diogo.

Mitos e curiosidades sobre a comunidade

Frei José Antônio mostra anel dado pelo Papa à comunidade, na Capela São Francisco de Assis - Marcelo Regua / Agência O Globo

Anel do Papa

É falsa a versão de que o anel dado de presente à comunidade pelo Papa João Paulo II à comunidade, em 1º de julho de 1980, desapareceu ou foi roubado. O presente do Pontífice está na favela, a salvo, como mostra o Frei José Antônio, na Capela São Francisco de Assis (na foto acima). Para comemorar os 38 anos da visita do Papa à igrejinha, será realizada uma missa no local no próximo dia 7, a partir das 16h.

Mansão de David Beckham

Não é verdade que o ex-jogador de futebol David Beckham tenha comprado uma mansão na comunidade, como foi falado em abril de 2014. Na época, dizia-se que o galã inglês teria pagado de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões pela propriedade, que ficaria na parte mais alta do morro, com vista para o mar. Na região, os boleiros que dão show atualmente são crianças e adolescentes da escolinha da Vila Olímpica da comunidade (foto abaixo).

Crianças jogam futebol em escolinha da Vila Olímpica do Vidigal - Marcelo Regua / Agência O Globo

Marca registrada

A informação que corre na favela de que o Vidigal virou marca registrada é verídica. De acordo com uma consulta no cadastro do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), desde 2015 a marca pertence a uma empresa de perfumaria e cosméticos com sede no Centro do Rio. Outras empresas reivindicam o registro do nome para as suas marcas, entre elas uma produtora de vinhos.