Saúde

O caso Marisa Letícia é só a ponta do iceberg

O caso Marisa Letícia é só a ponta do iceberg

Mais de 80% dos médicos residentes divulgam informações sigilosas de pacientes nas redes sociais, revela um estudo realizado na Unifesp

CRISTIANE SEGATTO
08/02/2017 - 20h11 - Atualizado 09/03/2017 15h25
Marisa Letícia,mulher do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silba (Foto:  Nelson Almeida/AFP)

 

O escândalo provocado pela divulgação de informações sigilosas sobre a saúde da ex-primeira-dama Marisa Letícia tornou pública uma prática corriqueira entre os médicos. Embora seja comum, o compartilhamento de dados de pacientes em grupos de whatsapp não pode ser tolerado. Nada como o olhar de um outsider para apontar práticas absurdas que, de tão usuais, parecem aceitáveis. Para isso, entre outras coisas, serve o jornalismo. Para desnudar os reis e questionar as regras.

Na relação entre médicos e pacientes, o poder está 100% concentrado nas mãos dos profissionais. Eles detêm o conhecimento, a técnica e os meios capazes de salvar ou de aliviar o sofrimento. É um poder desproporcional. Algo que precisa ser questionado e vigiado de perto pela sociedade.

Não fosse a relevante reportagem de Thiago Herdy, publicada no site do jornal O Globo, dois médicos não teriam sido demitidos (uma do Hospital Sírio-Libanês, outro da Unimed de São Roque) e o Brasil não teria se dado conta de mais uma importante vulnerabilidade dos doentes.
 

O caso Marisa Letícia é uma bizarra sucessão de desrespeitos. Começa com um jornalista vangloriando-se num vídeo postado no YouTube de ter colocado as mãos numa tomografia da ex-primeira-dama. Não satisfeito em falar, ele mostra o exame. Continua com uma plantonista do Hospital Sírio-Libanês enviando mensagens de WhatsApp a um grupo de antigos colegas de faculdade. Ela confirma que Marisa estava no pronto-socorro com diagnóstico de acidente vascular hemorrágico (AVC) de nível 4 na escala Fischer – considerado um dos mais graves – e prestes a ser levada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Como era previsível, a informação foge do controle e viraliza. 

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O show de horrores continua com a observação insana de um neurocirurgião que trabalhava na Unimed de São Roque. Em resposta ao comentário da colega, ele expressa o desejo de que o procedimento dê errado e Marisa “abrace logo o capeta”. A barbaridade ganha impulso com o ódio destilado, nas redes antissociais, por cidadãos de todas as profissões e desocupados de todo tipo.

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É preciso parar o mundo e, pelo menos por uns instantes, pedir para descer. Olhar de fora, a partir da perspectiva do doente. A indignação do público é um sinal da urgência do debate. Diante da repercussão do caso, não poderia ter sido apresentada em momento mais oportuno a dissertação de mestrado profissional defendida nesta quarta-feira (8) pelo cirurgião Diego Adão Fanti Silva, na Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Ele estudou as violações do sigilo profissional em mídias sociais por estudantes de medicina, residentes e cirurgiões que atuam no Hospital São Paulo (o hospital-escola da instituição).

O objetivo de Diego foi avaliar, dentro do ambiente cirúrgico, quais das três categorias mais divulgam informações de pacientes nas mídias sociais e quais revelam mais desconhecimento das regras de confidencialidade dessas mídias.
 

Participaram da pesquisa 156 pessoas – 52 alunos, 51 residentes e 53 docentes, com média de 24, 28 e 59 anos, respectivamente. Os resultados podem parecer banais para quem atua na área, mas são assustadores para qualquer cidadão que possa um dia estar anestesiado. Gente como você e eu.
 

A divulgação de informações de pacientes nas mídias sociais foi referida por 53% dos alunos, 86% dos residentes e 32% dos docentes. As políticas de privacidade das mídias sociais eram desconhecidas por 69% dos alunos, 80% dos residentes e 62% dos docentes.
Apenas 12 (7,7%) dos 156 entrevistados afirmaram não zelar pelo anonimato do paciente. Ou seja: 45 (86,5%) alunos, 46 (90,2%) residentes e 53 (100%) docentes relataram ocultar a identidade dos pacientes no momento da divulgação de seus dados clínicos. Menos mau, pero no mucho.

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Diego ressalta que existe um maior apelo sensacionalista aos procedimentos invasivos, que impactam no inconsciente mórbido coletivo. Muitos cirurgiões registram fotos e vídeos dos procedimentos que realizam ou participam, com diversas finalidades: documentação em prontuário, ensino, publicação científica, discussão com colegas, publicidade ou arquivo pessoal. O complicador nessa história é que muitas vezes o paciente encontra-se inconsciente, em situação de vulnerabilidade e sem condições de expressar seu consentimento sobre a concessão de sua imagem corporal.

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O trabalho menciona diferenças geracionais que contribuem para o problema. Os jovens, nascidos e criados no ambiente digital, têm mais dificuldade de resistir à tentação de compartilhar todos os momentos da vida nas redes sociais. Some-se a isso a pouca experiência pessoal com o sofrimento e um modelo tradicional de ensino que relega os valores da bioética a uma pequena carga horária.

Como bem lembra o autor, a violação do sigilo profissional em mídias sociais, segundo os princípios éticos e legais, é um erro médico. O levantamento feito pelo pesquisador das leis e códigos, tanto nacionais quanto internacionais, esclarece que é ilegal e antiética a divulgação de imagens de pacientes em ambiente público, mesmo com a autorização dos expostos.

A veiculação só é legal e ética se a captura for obtida com consentimento do paciente, exclusivamente para fins acadêmicos ou assistenciais. Mesmo quando a informação é divulgada sem a identificação do doente, ela continua sendo considerada ilegal e antiética.

“Nas leis e nas regras, não existe espaço para o sensacionalismo e a promoção profissional apoiados na exposição do paciente”, afirma Diego. “Muita gente acha que é normal divulgar uma foto ou um vídeo do paciente, mas se engana. Isso tudo é dado do prontuário médico e, como tal, deve ser protegido”, diz.
 

Quem perde quando as normas de conduta são desrespeitadas? Em primeiríssimo lugar, o paciente. Quando os direitos à autonomia e à privacidade são violados, ele é exposto a humilhações, constrangimento, estresse psicológico e prejuízos materiais ou morais. Também não é um bom negócio para os médicos e hospitais porque ambos respondem ética e legalmente pela infração.

Em casos terríveis como o de Marisa Letícia, há duas alternativas: ou se assumem o erro e a necessidade de mudança ou se negam os fatos. É sempre possível optar pelo segundo caminho, mas da consciência nada se esconde.

Colunas de Cristiane Segatto 620x70 (Foto: Época)







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