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Política

Minha Casa Minha Vida só repassou 0,5% dos recursos para baixa renda

Dados mostram que, até outubro de 2017, governo havia congelado as contratações na faixa 1
Vista aérea dos conjuntos habitacionais Viver Melhor 1 e 2, em Manaus Foto: Divulgação/ Defensoria Pública do Amazonas
Vista aérea dos conjuntos habitacionais Viver Melhor 1 e 2, em Manaus Foto: Divulgação/ Defensoria Pública do Amazonas

RIO - Lançado em março de 2009, o programa Minha Casa Minha Vida , do governo federal, já gastou R$ 388,8 bilhões com imóveis para famílias que precisavam de crédito mais barato em busca da casa própria. Nos últimos anos, porém, a faixa 1 do programa, destinada à população de baixa renda , foi praticamente abandonada : entre janeiro e outubro do ano passado, apenas 0,5% dos recursos foram destinados a empreendimentos para esse grupo. Além do corte de verbas que impediu novas contratações, uma série de problemas prejudica a vida de famílias mais vulneráveis que já receberam seus imóveis: obras com problemas graves de execução, falta de serviços públicos, de infraestrutura urbana no entorno, violência e aumento no custo de vida são as principais reclamações dos beneficiários.

De todos os R$ 388,8 bilhões já investidos no programa, 21,4% (R$ 83,4 bilhões) foram para a faixa 1, que atende a famílias com renda mensal de até R$ 1,8 mil. Esse perfil permite que o imóvel seja quase todo subsidiado com recursos públicos, enquanto os beneficiários contribuem com prestações de até 15% da renda familiar por dez anos.

Quem conseguiu a casa própria principalmente nessa faixa, no entanto, vive uma miríade de problemas. E quem ainda não foi beneficiado pode, ao menos por ora, esquecer o sonho. Dados obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, entre janeiro e outubro de 2017, dos R$ 56,7 bilhões movimentados no Minha Casa Minha Vida, apenas R$ 279 milhões — ou 0,5% do montante — foram para as pessoas de baixa renda.

Lançado no governo Lula, uma das principais bandeiras de Dilma Rousseff e remodelado pelo presidente Michel Temer, o Minha Casa Minha Vida já investiu pesado para atender à população mais pobre, mas o volume de recursos não impediu que fossem repetidos erros já vistos na história da política habitacional brasileira.

A exemplo de conjuntos criados no governo de Carlos Lacerda no antigo Estado da Guanabara (1960 a 1965), o sonho da casa própria muitas vezes virou pesadelo. Se, meio século atrás, a política era baseada na remoção radical de favelas de áreas mais valorizadas para zonas periféricas, o desafio dos últimos governos foi ampliar o número de residências para famílias com renda entre zero e três salários-mínimos, grupo mais afetado pelo déficit habitacional. Projetos dos anos 1960 como os da Vila Kennedy, Vila Aliança e Cidade de Deus ficaram conhecidos pelo fracasso na integração com a cidade e seus serviços, e logo foram marginalizados e ocupados por grupos criminosos. E permanecem assim até hoje.

Todos esses problemas estão presentes na vida de X., moradora dos conjuntos habitacionais Zilda Arns I e II, em Niterói. Os nove prédios abrigam 374 famílias que perderam as casas em abril de 2010, na tragédia do Morro do Bumba. Uma das vítimas, ela afirma que os problemas estruturais existentes na obra agravam ainda mais a situação de abandono das famílias, já perceptível no caminho do empreendimento: construído dentro de uma comunidade na periferia da cidade dominada por uma facção criminosa, chegar até a nova casa já é um desafio, por problemas de transporte. Moradores reclamam que não há linhas municipais até o local, que só é atendido por um ônibus intermunicipal, responsável pela ligação entre Niterói e a vizinha São Gonçalo. Dentro do conjunto, além da presença ostensiva de criminosos armados, os prédios têm infiltrações e rachaduras, pelas quais é possível ver através da parede. Além disso, um incêndio no terceiro andar em um dos blocos, ocorrido em 2016, chegou a provocar a interdição pela Defesa Civil. Sem reparos, os moradores acabaram retornando aos seus apartamentos sem que o problema fosse sanado. O caso é alvo de ação cautelar movida pelo Ministério Público Federal (MPF), que deve tomar novas medidas judiciais sobre o assunto.

— Estamos abandonados, à própria sorte. Quem botou a gente aqui usou de má-fé. É uma coisa completamente desordenada, não há controle de nada — critica a moradora, que pediu para não ser identificada.

Terceiro andar de um dos blocos do condomínio Zilda Arns, afetado por incêndio. Foto: Thiago Freitas / Agência O Globo
Terceiro andar de um dos blocos do condomínio Zilda Arns, afetado por incêndio. Foto: Thiago Freitas / Agência O Globo

Para Beatriz Rufino, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o Minha Casa Minha Vida, apesar de adotar modelo diferente dos projetos habitacionais que geraram bolsões de pobreza no Rio e em outros estados, acaba repetindo parte dos erros do passado. Ela cita a escolha de terrenos afastados dos centros urbanos e a falta de políticas complementares, como geração de empregos próximos:

— Não é exatamente o mesmo fenômeno que produziu casos como a Cidade de Deus, mas tem diversas semelhanças. Os problemas desses empreendimentos mostram que a produção de unidades como única estratégia é uma solução bastante limitada. E são maximizados pela escala e a velocidade da execução do programa.

Além das falhas estruturais e a falta de serviços públicos no entorno das novas casas, os beneficiários da faixa 1 do Minha Casa Minha Vida enfrentam uma dificuldade adicional quando se mudam: o aumento do custo de vida.

Esse tipo de reclamação é frequente no Parque Carioca, novo lar de famílias removidas da Vila Autódromo, no Rio, e de diversas outras comunidades afetadas por obras dos Jogos Olímpicos de 2016. São 900 famílias alocadas nos prédios, em Curicica, na Zona Oeste. Síndica do lote 3, Vera Lúcia da Silva Soares, de 58 anos, é sucinta ao definir a vida no conjunto, uma das vitrines do Minha Casa Minha Vida no Rio. Segundo ela, “ninguém se adapta, apenas sobrevive” por lá. Arcar com os custos da vida em condomínio tornou-se um tormento para boa parte dos moradores. No lote 3, com 200 unidades, a inadimplência na taxa condominial chega a 70%, diz ela.

— Muita gente que ganhou apartamento aqui não pagava nada onde morava. Só de luz tem gente gastando R$ 400 por mês. Já tentaram até fazer gato no gás — relata.

unidades não devem passar de 10% do previsto

O Ministério das Cidades argumenta ter acelerado as contratações no fim de 2017, mas admite que ficou aquém da meta de 2016, de 170 mil unidades. Com as 14.275 unidades previstas em novembro, o número de imóveis não deve passar muito de 10% do que foi previsto inicialmente. Segundo a pasta, os cortes começaram ainda no governo Dilma, em 2015, quando contingenciamentos praticamente interromperam as contratações e atrasos prejudicaram o ritmo das obras já em execução.

Vera Lúcia da Silva Soares, sindica de um dos lotes do conjunto Parque Carioca, na Zona Oeste do Rio Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo
Vera Lúcia da Silva Soares, sindica de um dos lotes do conjunto Parque Carioca, na Zona Oeste do Rio Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

As críticas dos moradores aparecem nas pesquisas feitas pelo governo com beneficiários da faixa 1, o que suscitou mudanças na escolha dos projetos aprovados. O aumento do tempo de deslocamento entre casa e trabalho é um deles. Também são citadas carências na oferta de serviços de saúde e educação. “Por esses motivos, no processo de seleção, foram priorizadas as propostas que apresentavam melhor inserção urbana, com presença prévia de equipamentos educacionais, agência bancária, agência dos correios ou lotérica e ponto de ônibus”, diz, em nota, a pasta.

Para o urbanista Canagé Vilhena, grandes empreendimentos, são um problema:

— Do ponto de vista urbanístico, o ideal seriam conjuntos menores, com baixa densidade.

SELVA DE PEDRA E DE ERROS NA FLORESTA AMAZÔNICA

Exemplo extremo das falhas identificadas na faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, os conjuntos habitacionais Viver Melhor 1 e 2, em Manaus, são acompanhados sempre de números superlativos. Erguidos no extremo norte da capital amazonense, os 8.895 apartamentos formam uma selva de pedra que disputa espaço com a floresta presente no entorno. E são alvo de uma disputa judicial milionária.

Moradia de 50 mil pessoas — ou quase 2,5% da população de Manaus — o megaempreendimento é o terceiro maior já construído no âmbito do programa. E reproduz em grande escala problemas vistos em outros conjuntos: prédios com rachaduras e infiltrações, entorno que não oferece oferta suficiente de serviços públicos, entre outros. Segundo a Defensoria Pública do Amazonas, a longa lista de falhas tornou insalubres os apartamentos onde vivem mais de 4 mil pessoas. Por isso, em fevereiro de 2017, o órgão abriu uma ação sobre o caso. No processo, pede que a Caixa Econômica Federal, a União e o estado do Amazonas paguem uma indenização de mais de R$ 133 milhões a título de reparação de danos sociais.

Segundo o defensor público Carlos Almeida Filho, da 1ª Defensoria Pública Especializada de Atendimento de Interesses Coletivos, o projeto não deveria ter sequer saído do papel, dada a falta de infraestrutura urbana no local:

— O primeiro problema é o isolamento, que contraria o Estatuo das Cidades. Até hoje no entorno não há número suficiente de escolas, por exemplo. Há mães que precisam acordar às 4h para levar as crianças às aulas em locais muito distantes.

Ainda de acordo com o defensor, que visitou as unidades, cerca de mil delas apresentam problemas graves, que colocam em risco a saúde da população.

— Essas unidades não têm a menor condição de abrigar pessoas. É uma situação horrorosa, há muitos com as paredes pretas de tanto mofo — relata.

O defensor público diz que a Caixa Econômica Federal já reconheceu, durante o processo, que os prédios precisam de reformas, mas se recusou a arcar com essa responsabilidade. Procurada para comentar os problemas sobre os empreendimentos, a Caixa não retornou até o fechamento desta edição.