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Economia

Justiça iniciou 72 ações penais por trabalho escravo em 2017

Atualmente, há 13 ações em andamento contra casos de escravidão no Rio
Situação de trabalho escravo em São Fidelis, no interior do Rio de Janeiro Foto: Rafael Moraes / Agência O Globo
Situação de trabalho escravo em São Fidelis, no interior do Rio de Janeiro Foto: Rafael Moraes / Agência O Globo

BRASÍLIA — De carvoarias a galpões de costura, do corte da cana a canteiros da construção civil, fiscalizações de combate ao trabalho escravo já revelaram condições desumanas nas cinco regiões do país em mais de duas décadas de atuação. Pouco se sabe, porém, sobre os desdobramentos criminais das batidas. Um levantamento inédito do Ministério Público Federal (MPF) obtido pelo GLOBO aponta que a Justiça brasileira iniciou 72 ações penais em 2017 contra denunciados por reduzir alguém à condição análoga à de escravo.

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O número é 47% menor que as 137 ações aceitas em 2016. Em 2015, foram 132. A queda no volume de denúncias recebidas em 2017, segundo o MPF, vem de um esforço concentrado nos últimos anos para dar vazão aos processos, o que teria resultado na diminuição do estoque. Tais dados representam um primeiro movimento para mapear o trabalho escravo nos tribunais brasileiros. Hoje não há informações oficiais sobre taxa de condenação, ocorrência de prisão e outros aspectos relacionados ao crime, que prevê pena de dois a oito anos.

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Do lado das vítimas, é possível verificar uma presença importante de estrangeiros escravizados por brasileiros, segundo as denúncias, em casos que vão além da situação mais conhecida de bolivianos em fábricas de costura. Uma análise detalhada de 21 das 72 ações penais iniciadas em 2017 mostra, por exemplo, paraguaios, venezuelanas e chineses resgatados de situação análoga à de escravo pelas autoridades nacionais.

— Há um aumento do fluxo de estrangeiros para o Brasil em razão da grave situação econômica dos países. São trabalhadores mais vulneráveis — diz Luiza Frinscheisen, subprocuradora-geral da República e coordenadora da área criminal do MPF.

Casos de paraguaios, embora ainda sejam pontuais, tornaram-se mais frequentes. Dois idosos dessa nacionalidade foram resgatados, no intervalo de dois anos, de uma propriedade rural em Porto Murtinho (MS). O primeiro tinha 74 anos na época, trabalhava havia seis como uma espécie de caseiro em condições precárias, aponta a denúncia do MPF. Recebia R$ 150 por mês quando foi encontrado, em 2013.

Em 2015, uma denúncia de maus-tratos levou equipes de assistência social do município ao mesmo imóvel, onde identificaram um homem, então com 76 anos e bastante debilitado. Em cinco meses de trabalho, o paraguaio recebeu dois pagamentos, um de R$ 50 e outro de R$ 100. Em nenhum caso havia registro em carteira ou salário fixo, de acordo com o MPF.

Segundo a acusação, os idosos moravam e trabalhavam em condições desumanas. A alimentação fornecida se resumia a óleo, macarrão e arroz. Os casos foram enquadrados como suspeita de trabalho escravo e os donos do imóvel passaram a responder na Justiça.

Outro caso que chegou à Justiça no último ano é o de 13 paraguaios resgatados em serviços de quebramento de pedras no município de Mercedes (PR). A denúncia narra que eles não tinham qualquer aparelho de proteção, ficavam alojados em um galpão insalubre às margens de uma rodovia, tinha os mantimentos descontados do salário e se viam sem condições de deixar o local. O patrão foi acusado de escravizar os paraguaios.

Em janeiro de 2017, a Polícia Federal, após cerca de dois anos de investigação, prendeu um casal em Paracaima (RR) em flagrante, acusado de submeter oito venezuelanas a condições análogas à de escravo associadas a exploração sexual. A denúncia aponta a "fragilidade econômica das vítimas, dada a intensa crise na Venezuela, e o abuso por parte dos denunciados, que se valiam dessa condição de vulnerabilidade extrema para atraí-las, ao preço de pratos de comida".

"Uma situação precária de trabalho e vida" foi destacada numa outra denúncia do ano passado contra o dono de uma pastelaria em Niterói, autuado em inspeção por reduzir à escravidão três empregados chineses. Os imigrantes moravam, com uma criança recém-nascida filha de dois deles, na despensa da lanchonete, local sem ventilação e em estado degradante de conservação e higiene. Não tinham documentos que comprovassem a regularidade no Brasil, aponta o MPF.

Números do levantamento
Ministério público federal mapeou problema nos estados
Ações penais
iniciadas
em 2017
RR
1
AP
1
CE
PA
2
MA
4
6
PI
PB
1
TO
1
AC
12
1
MT
BA
Desdobramentos
5
7
Denúncias aceitas
pela Justiça
GO
MG
1
Inquéritos abertos
pela PF
12
MS
ES
5
2
SP
132
PR
2
RJ
2015
361
4
1
SC
137
2016
1
RS
308
1
72
2017
265
Fonte: Ministério Público Federal
Números do levantamento
Ministério público federal mapeou
problema nos estados
Ações penais
iniciadas em 2017
RR
1
AP
1
CE
2
PA
MA
4
6
PI
PB
1
TO
1
AC
12
1
MT
BA
5
7
GO
MG
1
12
MS
ES
5
2
SP
PR
2
RJ
4
1
SC
1
RS
1
Desdobramentos
Denúncias aceitas
pela Justiça
Inquéritos abertos
pela PF
132
2015
361
137
2016
308
72
2017
265
Fonte: Ministério Público Federal

CONEXÃO COM OUTROS CRIMES

Coordenadora do Grupo de Apoio ao Combate à Escravidão Contemporânea no MPF, a procuradora Adriana Scordamaglia afirma ser comum a conexão da escravidão contemporânea com outros crimes, como estelionato, aliciamento de trabalhadores, uso de documentos falsos, exploração sexual e de mão-de-obra estrangeira. Segundo ela, o conceito de trabalho análogo à escravidão precisa ser mais bem compreendido, inclusive no Judiciário:

— Infelizmente existe uma grande resistência do Poder Judiciário para enquadrar a prática da escravidão contemporânea como trabalho escravo, embora esteja havendo avanços. Mas, na visão de alguns julgadores, o trabalho escravo só ocorre quando a pessoa está algemada.

Adriana defende que os órgãos envolvidos na apuração e processamento dos casos agem de forma bastante criteriosa antes de classificá-los como trabalho escravo. Ela rechaça a alegação de alguns setores produtivos de que as fiscalizações exageram no rigor, considerando meras infrações trabalhistas como escravidão.

— Nós consideramos, inclusive, a realidade local para enquadrar a conduta. Há lugares em que você atravessa a estrada e se depara com uma situação completamente diferente na fazenda vizinha. Então, não é porque o trabalhador não está algemado que não há um desrespeito grave à dignidade da pessoa humana.

Somente seis estados — sendo quatro do Nordeste — e o Distrito Federal não registraram ações penais em 2017 por trabalho escravo. Tocantins e Minas Gerais tiveram o maior número de denúncias aceitas pela Justiça: 12 cada um. No Rio de Janeiro, há um processo iniciado no ano passado. Mas, no total, existem 13 ações em andamento sobre escravidão contemporânea na primeira instância da Justiça fluminense.

No ano passado, 265 inquéritos para apurar trabalho escravo foram abertos pela Polícia Federal no país, contra 308 em 2016 e 361 em 2015, segundo o levantamento do MPF. A quantidade de investigações iniciadas costuma ter relação direta com o volume de fiscalizações realizadas. Em 2017, o Ministério do Trabalho, principal órgão de inspeção, fez 184 ações, ante 207 no ano anterior.

O combate ao trabalho escravo é uma das prioridades da atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que assumiu em setembro o MPF. Ela se manifestou de forma contrária à portaria do governo, editada no ano passado, que dificultava as fiscalizações e a punição por trabalho análogo à escravidão. Após o Supremo Tribunal Federal suspender temporariamente a norma e diante de uma repercussão negativa internacional, o governo voltou atrás nas mudanças.