Cultura

Para poeta de ‘Paterson’, Jim Jarmusch fez trabalho artesanal em filme

Ron Padgett diz que adaptação respeitou caráter pessoal de seus poemas

O poeta Ron Padgett: ‘Venho de uma família da classe trabalhadora, não literária, mas, quando eu tinha 16 anos, decidi que escrever poesia era o que eu queria fazer.’
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Michael Loccisano/Getty Images/AFP
O poeta Ron Padgett: ‘Venho de uma família da classe trabalhadora, não literária, mas, quando eu tinha 16 anos, decidi que escrever poesia era o que eu queria fazer.’ Foto: / Michael Loccisano/Getty Images/AFP

RIO - Os fãs da série “Girls” e do mais recente episódio da franquia “Star Wars” devem se surpreender com o papel de Adam Driver em “Paterson”, de Jim Jarmusch. Driver vive um discreto motorista de ônibus em Nova Jersey, que escreve versos em brechas de sua rotina diária. A partir de sua observação detida, registrada em papel e lápis, o espectador conhece o trabalho de um dos nomes mais relevantes da poesia norte-americana da segunda metade do século XX. São de Ron Padgett os belos poemas que Paterson, personagem de Driver, escreve e verbaliza ao longo do filme. Poeta profundamente ligado à cidade de Nova York, onde dirigiu o icônico e ainda ativo Poetry Project, na Igreja Saint Mark, no East Village, Padgett conta nesta entrevista, por e-mail, um pouco sobre sua relação com Jarmusch e o processo de criação dos poemas de “Paterson”.

Você e Jarmusch já se conheciam há tempos, como foi o convite para participar da produção?

Jim e eu nos tornamos amigos uns 15 anos atrás, por meio de um amigo comum, o escritor Paul Auster. Conhecíamos o trabalho um do outro muito tempo antes disso. Vários anos atrás Jim me ligou e contou de um filme que estava pensando em fazer sobre um motorista de ônibus que escreve poesia e vive em Paterson, e me perguntou se eu poderia servir como o que ele chamou de “consultor de poesia”. Eu não sabia o que poderia ser um consultor de poesia, mas imediatamente disse sim, porque eu gosto de Jim e confio nele. Mais tarde ele voltou a me ligar perguntando se poderia usar alguns dos meus poemas no filme, e é claro que fiquei surpreso e encantado. O processo todo foi simples e pessoal. Jim é muito respeitoso com quem trabalha com ele.

Quando escreveu os poemas para o filme, você tentou incorporar a voz do personagem aos versos?

Quatro dos meus sete poemas em “Paterson” foram escritos muito antes de o filme ser feito. Jim os selecionou por conta própria de meus livros, mas disse-me que eu poderia escrever mais poemas se eu quisesse. Em princípio a ideia me apavorou, mas logo eu me vi escrevendo mais três. Para realizá-los, de certo modo eu me projetei na fantasia de ser um motorista de ônibus, mas, ao mesmo tempo, queria escrever poemas que pudessem existir por conta própria, independentemente do filme.

Como se sentiu trabalhando para a indústria cinematográfica, tão diferente da atmosfera artesanal do trabalho poético?

Jim Jarmusch é um cineasta muito independente, então não penso nele como alguém da “indústria cinematográfica”. Na verdade, ele é um artesão, como eu. Esse projeto se parece mais com os projetos colaborativos que tenho feito com amigos artistas nos últimos 55 anos: pessoal, não industrial.

Como foi ouvir Adam Driver lendo seus poemas? Sua leitura o surpreendeu?

Eu estava muito curioso para ver como Driver diria os poemas em voz alta, e eu fiquei não apenas aliviado, mas encantado com sua entrega. Soa certo, perfeito para o personagem. Driver é realmente um bom ator. Ele não parece estar atuando.

O poeta William Carlos Williams é uma espécie de centro gravitacional do filme, com diversas referências à sua biografia e sua obra principal, seu longo poema sobre a cidade de Paterson. Qual sua relação com o trabalho de Williams?

Eu descobri a poesia de Williams quando tinha 16 anos e gostei muito, então li seu trabalho em prosa também. Ele era um maravilhoso escritor de ficção. Em 1964, por volta de 18 meses após sua morte, eu e alguns amigos poetas fizemos uma espécie de peregrinação até sua casa em Nova Jersey e fomos muito bem recebidos por sua viúva, uma mulher doce e amável. Eu senti como se nós tivéssemos entrado em um lugar muito especial.

Como foi o começo de sua carreira como poeta? Quando você sentiu que a poesia poderia ser seu trabalho?

Eu venho de uma família da classe trabalhadora, não literária, mas, quando eu tinha 16 anos, decidi que escrever poesia era o que eu queria fazer. Talvez os poemas no filme funcionem por conta dessa trajetória modesta. Em minha família, ser esnobe, presunçoso ou se gabar era considerado vergonhoso.

De Ginsberg a Patti Smith, boa parte da poesia norte-americana produzida na segunda metade do século passado passou pelo evento literário Poetry Project. Como foi ter dirigido o projeto? Como é possível que ele ainda se mantenha vivo?

Eu dirigi o projeto por apenas dois anos e meio. Era muito trabalho duro — nada do glamour que as pessoas podem pensar —, mas eu me sinto feliz por ter feito. Neste ano o projeto celebra 50 anos, uma tremenda conquista para um grupo pequeno e local. Ter um espaço físico num prédio histórico tem proporcionado continuidade, mas o projeto tem sido fundamentalmente sustentado pelo idealismo e a energia de cada geração que se envolve com ele, constantemente renovando-o enquanto honra suas tradições - uma delas é a inovação!

A poesia tem algum papel em momentos como o atual, protagonizados por personagens como Donald Trump?

A poesia tem um papel em todos os tempos, mas, nestes dias tristes e deprimentes nos EUA, ela pode servir como um consolo para alguns e um motivador para a ação política para outros. Não conheço um único poeta que não esteja enojado, desanimado e enraivecido por Trump e seus perigosos companheiros, então, embora nós poetas tenhamos, é claro, nossas diferenças estéticas, nós estamos unidos. Quanto efeito isso trará é uma questão a ser respondida, mas estamos fazendo o melhor que podemos. Se nada mais, talvez a poesia possa ajudar as pessoas a se sentirem um pouco melhor em estar vivas, assim como o filme de Jim Jarmusch faz.

* José Godoy é poeta, autor de "A arte de andar por aí sem portar um celular" (Ed. 7Letras)

Leia a crítica: A arte poética de se contemplar o banal

Paterson é um motorista de ônibus na cidade de Paterson, onde se passa o poema magistral “Paterson”, do americano William Carlos Williams (1883-1963).

Localizada em Nova Jersey, a cidade é também o cenário para o novo filme de Jim Jarmusch, naturalmente batizado de “Paterson” para manter a coerência. O longa-metragem se enquadra entre as grandes obras de Jarmusch e reforça o talento do diretor em extrair lirismo de qualquer situação. Sua história se passa ao longo de uma semana, com os dias escritos na tela e as situações bem marcadas entre a manhã e a noite para deixar clara a rotina dos personagens para o espectador.

O melhor de Jarmusch é que ele entende que a vida cotidiana só é convincente quando se torna repetitiva, então 2/3 da história servem para mostrar como aquele motorista de ônibus passa suas horas sem nada de especial, apenas trabalhando, tendo um relacionamento amigável com sua mulher, passeando com seu cachorro, Marvin, e observando seu mundo limitado pelas ruas quase sempre vazias de Paterson. Ah, ele também escreve poemas e é fã de Carlos Williams. É um motorista poeta (interpretado por Adam Driver), e só essa ideia já é perfeita para o objetivo que se pretende alcançar.

Depois, só para lá da metade do filme é que a rotina é brevemente quebrada. E novamente Jarmusch mostra a qualidade do seu cinema ao lidar com acasos e acidentes, para no fim tudo voltar ao normal. Porque a vida de um poeta é, afinal, a eterna contemplação do banal.