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Brasil Educação

'Brasil será o próximo país a ter convulsão social, após Equador e Chile', diz Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português está no país para a reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)
Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos realizou abertura da Anped, na UFF Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos realizou abertura da Anped, na UFF Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

NITERÓI — No Brasil para a abertura da reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação —realizada no último domingo, na UFF —, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos , de 78 anos, acaba de lançar “O fim do império cognitivo” (Editora Autêntica, 2019), em que critica “um conhecimento que é todo produzido na Europa, EUA e Canadá, e reproduzido por autores do Sul” e defende a inclusão da sabedoria de “indígenas, afroquilombolas, mulheres e camponeses” na educação, para que todos “se sintam parte da escola”.

Classificou como “um grande crime” a educação que busca transformar os estudantes em empreendedores sem que tenham condições para tal (“É a autonomia para estar à espera do emprego que o Uber lhe dá”) e disse que as políticas neoliberais adotadas pelo governo Bolsonaro fazem o Brasil se aproximar de uma “convulsão social” como acontece no Chile e no Equador.

O que é o “império cognitivo" e por que chegou ao fim?

É o fim das epistemologias do Norte, de um conhecimento que é todo produzido na Europa, EUA e Canadá, e reproduzido por autores do Sul. Ele está em crise porque a própria Europa está em crise de exaustão. O capitalismo global está em uma fase de exaustão. Os jovens, de 15 e 16 anos, como a Greta [Thunberg, jovem ambientalista], na Suécia, estão numa situação que conseguem imaginar o fim do mundo mais fácil, por causa da crise ecológica, do que o fim do capitalismo. Isso os deixa desesperados. O capitalismo é uma coisa histórica. Teve um princípio e terá um fim. Agora, não há planeta B. Os jovens estão desesperados por não haver nem uma melhoria nesse sistema. Estamos a falar de um pós-capitalista que só fica pior, no qual a concentração de riqueza só aumenta.

O que são as “epistemologias do Sul” que o senhor aponta como alternativa à escola?

Os movimentos indígena, camponês, de mulheres, afroquilombola produzem conhecimento extraordinário e nos seriam absolutamente preciosos quando enfrentamos, por exemplo, a crise ecológica. A concepção dos povos indígenas nos parece a única que pode nos salvar o planeta. A educação desconhece todo esse conhecimento por não o considerar valoroso. Eu acabei de vir da África do Sul. Lá, os estudantes negros chegam às escolas, mas elas continuam a ensinar uma cultura branca que os alienam, os tiram do sistema, os levam ao suicídio e à depressão. Se sentem na escola, mas não se sentem parte da escola. No Brasil, muitas populações sentem o mesmo. As “epistemologias do Sul” são esforços para que todos os jovens no sistema educativo se sintam em casa porque ele também reproduz o seu conhecimento.

Como esses conhecimentos entrariam na escola?

Primeiro através dos alunos que vêm dessas culturas. No Brasil, durante muito tempo, eles não entraram na educação. Foi preciso o Prouni e outras leis que permitiram que a juventude negra e indígena começasse a entrar na universidade. Hoje, eles têm uma presença muito razoável, mas não no pessoal docente — e sim no discente. E também, em geral, não no currículo. No Brasil, porém, temos experiências pioneiras, que não são muito conhecidas. Na faculdade de Medicina de Manaus médicos tradicionais de medicina ribeirinha vão à faculdade explicar seus conhecimentos aos alunos, sobretudo depois que a OMS disse que essas medicinas tradicionais eram muito importante para as condições crônicas. Não é um movimento anticiência. Se eu quero ir à lua eu preciso de conhecimento científico, mas se eu quiser conhecer a biodiversidade da Amazônia eu tenho que ir às populações indígenas. Para diferentes objetivos, nós precisamos de diferentes tipos de conhecimento.

Como foi a experiência de viver no Jacarezinho, em 1970, para o trabalho de doutorado por Yale?

Passei uns quatro meses vivendo lá, num quarto. Não podia nomear o lugar no trabalho pois havia muito trabalho organizativo clandestinamente à ditadura acontecendo lá e chamei de Pasárgada. Vinte anos depois, ainda vinha americano ao Brasil procurando por Pasárgada (risos). Na época, não havia essa droga que temos hoje, nem o crime organizado. Lá, eu vi que havia tanta gente analfabeta com tanto conhecimento. Eles me ensinaram a sabedoria de vida de estar com as pessoas e de poder falar de maneira com que elas me entendam.

Como vê o ambiente para a pesquisa científica no Brasil?

O Brasil é, em termos de pesquisa, uma país de desenvolvimento intermediário que fez avanços tecnológicos na ciências e, especialmente nas ciências aplicadas, altamente reconhecidos. A UFF, por exemplo, tem avanços tecnológicos na área da física absolutamente notáveis de nível mundial. Também não é por acaso que a Embraer era um dos três grandes fabricantes de aviões. Nos EUA, nas ligações regionais, só andamos de aviões da Embraer. Da mesma forma a indústria de petróleo. Absolutamente de primeira linha, mas que está sendo sucateada.

O senhor foi consultor da Constituição do Equador, de 2008. O que é possível se aprender com os indígenas neste momento histórico?

Se aprende bastante. Nessa Constituição de 2008, pela primeira vez acolhe, dentro de um texto eurocêntrico, moderno, conceitos indígenas. Como os direitos da natureza. Nós na nossa cultura ocidental, no tal império cognitivo, é inovação. Porque os direitos humanos é dos humanos. A natureza não é humana e não pode ter direitos. Mas para os indígenas não pode ser assim. Essa é a grande inovação que o Equador nos deu. O que aconteceu agora, obviamente, é que o texto da Constituição é muito bonito, mas não se aplicou. E o resultado está aí. O país está em chamas, arrasado. O continente está a mostrar que o neoliberalismo chegou ao fim. Os portugueses, a partir de 2016, fizeram uma descoberta que o neoliberalismo é uma mentira. Não cria boa imagem para o país, não cria paz social e não cria investimento. E o Brasil, em breve, será o próximo. Quando as pessoas começarem a sentir no bolso das famílias a consequências dessas políticas neoliberais vai haver consequências e eventualmente traduzir-se-á em convulsão social.

Paulo Freire tem sido atacado duramente por setores conservadores. É possível um processo educacional sem realidade do estudante?

Não pode existir. A Escola sem Partido é uma escola com partido, com muita ideologia. Ela defende que o professor é um transmissor de conteúdos e não um educador. Ora, então acabemos com as pessoas e coloquemos umas máquinas qualquer a falar com os estudantes. Não penso que Paulo Freire foi tão decisivo nas escolas de Educação quanto se pensa. Ele foi, por um período, quase mais conhecido no exterior do que aqui no Brasil. Eu o conheci. Não era um doutrinador. Era um conversador.

O que o senhor tem lido?

Muito rap. Eu escrevo letras de rap, trabalho muito com rappers aqui. Vou inclusive lançar um livro com o rapper Gog, um grande amigo meu. Eu cheguei à conclusão que esses jovens artistas que vêm das periferias, que são discriminados e sileciados, estão produzindo as melhores canções e literatura de protesto. Eu como sociólogo não sou capaz de mostrar a raiva que me dá essa sociedade tão injusta como um bom artista de rap.

Como você vê a gestão do presidente Jair Bolsonaro?

Pior possível. Para mim é um neofacista. É um homem que não estava preparado para dirigir um país, nem sequer para dirigir uma empresa, ao contrário do Trump que pode dirigir uma empresa. E penso que Bolsonaro tem causado um dano extraordinário ao Brasil porque veio legitimar tudo aquilo que havíamos pensado que havia sido superados. Ele está fazendo com que o Brasil seja um objeto de risada internacional nesse momento. O Brasil é ridicularizado em todo lado. Muitas vezes, europeus mais oficializados não podem (rir) porque precisam respeitar o país, e é preciso respeitar o povo, mas não se respeita o presidente deste país. Mas não penso que ele é estúpido. Isso é uma estratégia.

O que a educação brasileira pode aprender com a portuguesa, que teve importante crescimento nas taxas de aprendizado?

A educação portuguesa tem continuado a prosperar. A grande questão não é só a autoestima que é preciso manter nos profissionais, como não degradando o seus salários, mas também um discurso público que é fundamental. Ele tem que sentir acarinhado. E tem que haver investimento. Esse investimento não pôde ter lugar entre 2011 e 2015, quando o país viveu uma experiência neoliberal, e está agora, lentamente, sendo reposto. Mas o segredo de Portugal tem isso. Nunca se pôs em causa o valor da educação pública, nem nunca houve forças políticas que viessem fazer uma apologia 100% a educação privada e muito menos forças conservadoras religiosas que viessem pôr em causa a liberdade dos professores na sala de aula e a autonomia que eles têm para educar os seus estudantes. É uma situação que temos hoje no Brasil e é extremamente preocupante.

Se o senhor pudesse dar um conselho a um típico jovem brasileiro com acesso à Educação que hoje que irá fazer o Enem nas próximas semanas, o que diria?

Eu aconselho ao estudante olhe para essa sociedade e veja em que sociedade ele vive. Veja a questão da crise climática, como estão as injustiças sociais, a crise da democracia. Veja como estão os sistemas de saúde. E comece a ter uma noção de como estão esses problemas e que se organize como jovem. Porque os jovens foram, desde maio de 68, uma força extraordinária. O jovem que entrar na universidade deve fazer da universidade um campo de expansão da sua própria subjetividade. Mas não fazer dele um empreendedor. Um grande crime que estamos cometendo na educação é tentar fazer de todos os estudantes empreendedores. Porque é exigir alguém que seja autônomo sem ter condições dele ser autônomo. É a autonomia para estar à espera do emprego que o Uber lhe dá. Uma autonomia sem condições de autonomia. E tem que voltar a se organizar. A rebelião do estudante é sempre um benefício para a sociedade, mesmo que não se conquiste todas as vitórias, pelo menos alguma vai se conquistar.