Coluna
Zélia Duncan
Zélia Duncan. 09 de setembro de 2015 Foto: Roberto Setton | Divulgação Foto: Roberto Setton / Divulgação

De luto, lutando

Que a indignação e a tristeza nos empurrem neste momento não para dentro de nós apenas, mas para a rua

Marielle morreu. Quando li isso comecei a digitar a palavra “não”. Não, não não, não. Alguém me ajuda, alguém desmente, alguém pelo menos atenua. Marielle sofreu um atentado, está entre a vida e a morte. Pelo menos poderíamos lutar por ela, mover montanhas, doar sangue, tempo, presença, vigília.

Andamos assim, sem espaço. O Rio virou um cubículo sem luz onde, claustrofóbicos, tentamos enxergar enquanto falta o ar. Marielle era oxigênio.

Se Marielle morreu mesmo e acordei de novo com a notícia, o que vai com ela é alguma coisa que esmaga o coração num lugar irremediável. Estamos mesmo vivendo o terror, um terror legitimado todo dia, Marielle sabia e apontava. Sentia na pele, nos olhos, na inteligência.

Nasceu na Maré, de onde nunca saiu. Mulher negra, gay, viva. Conhecia o sentido de ser minoria num grau que a fazia ter muito mais coragem do que a média. Nasceu com a mão na massa e dessa maneira se foi. Trabalhando, teimando, incomodando tanto, que alguém tão vilmente covarde, só conseguiu enxergar uma saída para tanta determinação e coragem numa mulher negra, que sempre se destacou brilhantemente.

Mas o recado que sua execução nos envia não pode ser apenas de medo e terror, como certamente desejam os ratos que infestam nossa cidade. Não será. Vamos viver nosso luto lutando. Que a indignação e tristeza nos empurrem nesse momento não para dentro de nós apenas, mas para a rua. Para as esquinas por onde encontrei Marielle algumas vezes, em passeatas contra o golpe, por direitos das mulheres e liberdade.

Única vereadora negra da Câmara, perderam a honra de sua presença e ganharam a mancha vil de sua irrecuperável ausência.

Quisera ser uma mulher gigante, ter o corpo blindado e poder ser um escudo que os protegesse naquele momento. Eu sempre penso no exato momento. Marielle saindo de uma reunião, onde suas últimas palavras, segundo disseram, foram, “avante, pretas!”. Se despede, abraça as companheiras, sorri, diz algo encorajador, combina o próximo passo.

Está cansada? Com fome? Vai descansar, encontrar a companheira, jantar? Entra no carro, onde a espera Anderson, que fazia um bico como motorista, para ajudar nas despesas com a família e, então, o mundo desaparece para eles de repente.

Será que conseguiram perceber o perigo um milésimo de segundo antes? E o susto? Marielle conhecia riscos, mas isso? Seus algozes estavam focados, frios, instruídos. A cabeça, é ali que mora o primeiro perigo, a cabeça que ameaça, a cabeça, num corpo negro e poderoso de mulher.

Lutar por Direitos Humanos virou profissão de risco no país tropical, abençoado por quem? Sensação de guerra perdida, de passo sem rumo, desamparo generalizado.

Marielle morreu. Essas duas palavras hoje têm o peso do mundo. Sabemos o que estão querendo nos levar e o que já nos levaram. Mas estamos aqui. Por ela, por nós, por tudo, estaremos aqui. De luto, lutando.

* Zélia Duncan é cantora e compositora

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