Rio

Mortes no Alemão despertam dor e revolta de familiares e moradores

Menino de 13 anos é a nova vítima da guerra entre policiais e traficantes durante instalação de torre blindada da UPP

Luto. Michele (sentada, à direita), mãe de Paulo Henrique, é consolada pela irmã Luana; no chão, a avó e outro tio do menino de 13 anos
Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Luto. Michele (sentada, à direita), mãe de Paulo Henrique, é consolada pela irmã Luana; no chão, a avó e outro tio do menino de 13 anos Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

RIO — Uma canção evangélica toca alto na sala e pode ser ouvida do lado de fora da casa, no Complexo do Alemão, em uma localidade conhecida como Cruzeiro. “A oração do crente estremece o monte, quando o crente chora, o senhor responde”, diz a música, parecendo aumentar em todos a vontade de chorar. O som é interrompido por tiros de pistola disparados a certa distância. Michele está muda, de olhos fechados, nos braços de sua irmã Luana. A mãe das duas, também em silêncio, deitada em um colchão no chão, é consolada por outro filho. A bala que atravessou a barriga de Paulo Henrique Oliveira de Morais atingiu em cheio sua família. E também a esperança dos moradores do complexo, que já era pouca.

Paulo Henrique tinha apenas 13 anos. Ele estava indo jogar videogame na casa de um amigo quando foi alvejado, às 18h de segunda-feira, em um beco perto de onde morava. A família, toda criada no morro, passou o dia reunida, buscando abrigo na religião, recebendo abraços dos vizinhos. Ninguém dormiu na casa. Poucas horas antes, todos estavam em vigília, no Hospital Salgado Filho, enquanto Paulo Henrique lutava pela vida numa mesa de cirurgia — os médicos o submeteram a dois procedimentos, um deles na madrugada de ontem. Mas não foi possível evitar a morte, a quarta ocorrida no Alemão desde sexta-feira, quando a Polícia Militar começou a instalar uma torre blindada na Favela Nova Brasília.

— Ele era um menino doce e adorável na época em que eu morava aqui. Quando foi me visitar no sítio onde vivo, em Nova Iguaçu, vi que não tinha mudado nada, continuava sendo uma criança grande — conta a tia Luana, de 38 anos.

A mãe, Michele, chora sem parar. Quando alguém a cumprimenta ou tenta lhe dizer algo, continua de olhos fechados, como se mergulhada em sono profundo. De vez em quando, repete para si mesma duas palavras: “Meu filhinho”, diz apenas. Hoje tem 33 anos. Mas tinha apenas 20 anos ao dar à luz seu primeiro menino. Agora, Michele só tem o caçula Pedro, de 9 anos, que era amigo inseparável do mais velho.

— Estragaram meu neto. Ele ficou sem fígado e sem baço, segundo os médicos. Chegou com vida ao hospital. A última coisa que ele me disse foi “vó, me salva” — conta Marinete Martins Machado, de 62 anos. — A família está acabada. A gente tinha que ter ido ao Instituto Médico-Legal até 17h, mas não conseguiu sair de casa. O complexo está acabando, meu senhor.

Paulo Henrique brincava de bolas de gude com crianças mais novas que ele. Como Rikele, de 11 anos, e Bryan, de 10, que veste uma camisa onde se lê “Elaine vive”, em homenagem a Elaine Cristina, de 35 anos, que morreu há quase um ano, também no Alemão, vítima de bala perdida. Paulo Henrique estava no lugar errado, na hora errada. Assim como Gustavo Silva, de 17 anos, ajudante de padeiro que só trabalhava à tarde, mas, na última sexta-feira, por ser feriado, entraria no serviço às 6h30m. Ele morreu a caminho do trabalho, atingido na Rua 2, em Alvorada, na calçada de uma loja de roupas. Do outro lado da rua, o bar de João Bastos tem mais de 50 marcas de tiro, todas da última semana. No Alemão, até a própria casa pode ser o lugar errado: na sexta-feira, o soldado do Exército Bruno de Souza aproveitava a folga em família e foi atingido no sofá por um tiro de fuzil, que o matou em minutos.

O Alemão chora seus mortos com lençóis e toalhas brancas nas janelas — em algumas, há a palavra “paz”. Pelas vielas, o protesto contra a violência, que ontem reuniu cerca de 200 pessoas, resgatou lembranças da ocupação do Alemão, em 28 de novembro de 2010. Naquele dia, “bandeiras” brancas também cobriram o complexo. Quase sete anos depois, a cena ontem era outra: crianças gritavam “Fora UPP” para policiais. Uma delas segurava uma bandeira do Brasil.