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Clarinetista israelense apaixonada por choro concorre ao Grammy com dois álbuns 'brasileiros'

Anat Cohen gravou disco que celebra obra de Moacir Santos
A clarinetista israelense Anat Cohen, indicada ao Grammy Foto: Shervin Lainez / Divulgação
A clarinetista israelense Anat Cohen, indicada ao Grammy Foto: Shervin Lainez / Divulgação

RIO — Anat Cohen, clarinetista de 38 anos, cresceu em Tel Aviv ouvindo todo o tipo de música. Entre os LPs da coleção da família, estava um, digamos, curioso: “País tropical” (1978), no qual o cantor Matti Caspi verteu para o hebraico canções da MPB como “Casa de bamba”, “Fio Maravilha”, “Você abusou” e a que dá título ao disco.

— Não sabia que aquilo era música brasileira. E, sem perceber, fui me deixando levar por ela — relata, em claro português, a artista, que concorre, no domingo, na festa do Grammy, em Nova York, aos prêmios de melhor disco de jazz latino (por “Outra coisa”, em que celebra a obra do maestro e compositor Moacir Santos ao lado do violonista Marcello Gonçalves) e ao de melhor disco de world music (por “Rosa dos ventos”, com o Trio Brasileiro).

Celebrada como jazzista nos Estados Unidos (no começo do mês, em Nova York, ela se apresentou ao lado do trompetista Wynton Marsalis em celebração pelos 80 anos de um concerto clássico do clarinetista e “rei do swing” Benny Goodman), Anat tem uma história de colaborações com brasileiros que começou em 1996, quando estudou na escola de música Berklee, em Boston. Lá, ela começou “a tentar fazer jazz com as músicas de Milton Nascimento e Edu Lobo”.

— Eu era sempre a gringa entre os brasileiros, sentia-me em casa com os ritmos e a língua — conta ela, que ali chegou a estudar um pouco de choro, antes de se mudar para Nova York, em 1999. — Então conheci a (saxofonista) Daniela Spielmann, que disse que eu tinha que ir ao Rio. Fui pela primeira vez em 2000 e me apaixonei completamente pelo choro.

Nessa que seria a primeira das muitas viagens que fez à cidade, Anat Cohen conheceu Marcello Gonçalves e a cena de samba e choro que se articulava em volta do (recentemente fechado) Bar Semente, na Lapa: ao lado de Marcello e de outros hoje celebrados músicos, como Hamilton de Holanda e Yamandu Costa, ela passou seus dias tocando. Quando voltou para Nova York, montou, com o violonista Pedro Ramos, o grupo Choro Ensemble, que durante anos bateu ponto no Zinc Bar, clube de jazz em Manhattan.

— Pouca gente do jazz de Nova York tinha coragem de tocar essa música, porque não dá pra improvisar, tem que estudar muito bem os temas — explica Anat, que chegou a levar seu Choro Ensemble ao tradicional Carnegie Hall.

A única constante nas inúmeras idas e vindas ao Brasil da clarinetista israelense foi a parceria com Marcello Gonçalves, ao lado de quem ela participou mais recentemente dos discos do português António Zambujo (“Até pensei que fosse minha”, dedicado à obra de Chico Buarque e indicado ao Grammy Latino) e de João Bosco (“Mano que zuera”).

O disco dos dois, “Outra coisa”, foi lançado no Brasil em 2016 e recebeu elogios entusiasmados de quem conhece bem a obra de Moacir Santos (1926-2006), como Edu Lobo (“A afinação e, principalmente, o suingue, são notáveis, e raramente você encontra algum artista estrangeiro que possa compreender, como Anat, o que fazemos por aqui”, disse Edu). No resto do mundo, o CD saiu em 2017 — ano em que a dupla passou fazendo shows por Luxemburgo, Portugal e Estados Unidos. A ideia agora é levar o espetáculo a Itália e Israel. Apesar de Moacir Santos ter morado boa parte de sua vida nos EUA, Anat diz que só agora a obra do pernambucano começa a ser celebrada por lá.

— O Moacir tem algumas composições conhecidas pelos músicos daqui, mas eu mesma ainda não tinha entrado direito na obra dele até trabalhar com o Marcello — confessa ela, acrescentando que o parceiro “escreveu arranjos maravilhosos, levando a orquestra para o violão de sete cordas”. — Tem de tudo na música do Moacir Santos: a raiz brasileira, o jazz, o blues... é muito raro um compositor encontrar esse equilíbrio, soar familiar para o americano e o brasileiro.

Para Marcello, o sucesso de Anat Cohen traz uma oportunidade de se pensar melhor por aqui a questão da música brasileira tocada por estrangeiros.

— Ainda existe um certo protecionismo no Brasil, tem muitos editais em que você só pode concorrer se todos os artistas forem brasileiros. E a Anat toca como um brasileiro — garante. — Acho que ela pode contribuir para quebrar um pouco esse preconceito por aqui, esse pensamento oposto ao do americano, que quer que o mundo inteiro toque jazz e inclusive incentiva estrangeiros a tocá-lo.

Um dos muitos que acreditaram na brasilidade de Anat Cohen foi o bandolinista brasiliense Dudu Maia, organizador desde 2011 de um workshop de choro em Port Townshend, no estado americano de Washington. Ele a convidou para dar um curso de clarinete por lá, baseado no que tinha ouvido dela, no Brasil.

— A afinidade musical e pessoal foi tão forte que logo em seguida marcamos de gravar no estúdio lá em casa o nosso primeiro álbum com o Trio Brasileiro ( que ele tem com os irmãos Douglas e Alexandre Mora, dedicado à música brasileira ) — diz Dudu, que agora vê o segundo disco da clarinetista com o Trio, “Rosa dos ventos”, ser indicado ao Grammy. — A Anat domina a linguagem do choro como ninguém. É importante a difusão internacional do choro que ela fez nos últimos 15 anos. Hoje em dia, fala-se em choro na “Downbeat” (revista americana que é espécie de Bíblia do jazz) .

Para Anat, ainda falta um tanto de trabalho para o choro chegar aos EUA. E muitos shows a se fazer.

— Quando falo em choro, os americanos perguntam: é samba, é bossa nova? Eles não entendem. Mas quando ouvem o que se faz com o bandolim e o pandeiro, ficam loucos — conta ela. — Não teve lobby nenhum no Grammy, nós mesmos fizemos a inscrição. Gravar CDs é muito fácil, o complicado é avisar ao público que eles existem.

Enquanto aguarda o resultado da premiação, ela planeja os próximos passos na carreira, que, no momento, se resumem aos projetos de jazz, em trabalhos com o seu quarteto e com o grupo 3 Cohens, que tem com os irmãos (e suas grandes inspirações na música) Yuval (saxofone) e Avihsai (trompete).

— O jazz é uma combinação de coisas que estão acontecendo no mundo. É economia, política e música. Tem que se ter a cabeça aberta e deixar a música ir para onde ela quer ir — acredita ela, que já gravou uma recriação de “Putty boy strut”, tema do DJ de música de vanguarda Flying Lotus (que abre os shows do Radiohead em abril, no Brasil). — É uma música muito boa de tocar, outros começaram a tocá-la depois que a gravei no meu CD (“Luminosa”, de 2015) .