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Paula Hawkins se aventura por enredo complexo em novo livro

Britânica lança ‘Em águas sombrias’ dois anos depois de ‘A garota no trem’

A escritora Paula Hawkins
Foto: Matt Dunham/AP/19-2-2015
A escritora Paula Hawkins Foto: Matt Dunham/AP/19-2-2015

LONDRES — Tudo gira em torno do rio no pequeno vilarejo de Beckford, no norte da Inglaterra. Ao longo dos séculos, muitas moradoras da cidade terminaram sua vida naquelas águas, mais precisamente no ponto conhecido como Poço dos Afogados. Algumas entraram por conta própria. Outras foram jogadas. Elas estão entre os narradores de “Em águas sombrias” (Record), novo livro da britânica Paula Hawkins. Dois anos depois de explodir no mercado editorial com o thriller psicológico “A garota no trem”, que vendeu quase 20 milhões de cópias, a autora volta a falar de mulheres tentando levantar a voz numa sociedade que prefere o seu silêncio. Mas desta vez ela correu mais riscos.

A ex-jornalista e ex-autora de comédias românticas deixou o anonimato e a conta bancária no vermelho em 2015 ao publicar a história de uma alcoólatra que acreditava poder desvendar um crime com base no que vira da janela de um trem. Ninguém confiava na protagonista, Rachel Watson. Nem ela própria. A trama, narrada por três mulheres, virou filme com Emily Blunt, fortaleceu o gênero do suspense feminino e mudou o destino de Paula.

MEMÓRIA E MISOGINIA

Desde então, era imensa a expectativa em torno de seu segundo livro. “Em águas sombrias” retoma o tema da memória e da misoginia e também traz narrativas alternadas, só que agora o enredo é bem mais complexo. São mais de dez personagens contando sua versão sobre o que está por trás das tragédias no rio da fictícia Beckford.

O livro começa com a volta de Jules Abbot à cidade de sua infância para acompanhar as investigações sobre a morte da irmã, Nel. A polícia acredita que Nel, escritora, fotógrafa e mãe solteira pouco ligada a convenções sociais, se matou. Ela era obcecada pelo Poço dos Afogados. Estudava suas vítimas, desde mulheres condenadas por serem “bruxas” no século XVII, amarradas e atiradas ali, até uma adolescente próxima da família, cujo corpo fora retirado do poço alguns meses antes da morte da própria Nel.

As irmãs Abbot estavam brigadas, mas Jules desconfia da tese do suicídio. Um trauma do passado, visto de forma oposta por elas, afastou-as para sempre. Lena, a filha rebelde de Nel, de 15 anos, é o elo que restou entre as irmãs. Todas elas, assim como as afogadas, são vistas pela cidade como gente que “buscava confusão”. São mulheres “encrenqueiras”, a quem o livro é dedicado.

— Falo de mulheres que são julgadas e consideradas culpadas por não serem como a sociedade ou como os homens esperam que sejam. Não há como vencer. Elas sempre serão vistas como um problema. O livro é para todas as mulheres que um dia se sentiram assim — diz em entrevista ao GLOBO a escritora de 44 anos, que admite já ter sido avaliada como “difícil” por não fazer “o que se espera que mulheres façam”, como se casar e ter filhos.

Nesse contexto de opressão, a busca de Nel pela verdade sobre o Poço dos Afogados era um incômodo para a idílica e ao mesmo tempo claustrofóbica comunidade imaginada por Paula. “Ninguém gostava de pensar que a água daquele rio era infectada com o sangue e a bile de mulheres perseguidas, de mulheres infelizes; eles a bebiam todos os dias”, diz uma das poucas moradoras que não aceitam a versão dominante sobre os mistérios do rio, mas é considerada “maluca”. Beckford é um lugar tristíssimo.

Para quem começou com comédias românticas sobre mocinhas atrapalhadas à espera do amor (ela assinava com o pseudônimo de Amy Silver), a autora mergulhou sem vacilar num mundo de escuridão e desesperança, não protagonizado por serial killers canibais, mas por personagens da vida cotidiana que poderiam estar na casa ao lado. Jules, assim como a Rachel do primeiro sucesso de Paula, é uma mulher fragilizada. A violência doméstica, explícita e velada, mina a confiança das mulheres e é um dos principais pontos da continuidade entre “A garota no trem” e o novo thriller.

— Sou feminista, mas não pensei no livro como um manifesto — esclarece Paula. — Meu interesse é falar sobre mulheres. O lugar em que elas sofrem mais violência é em sua própria casa ou entre conhecidos. É inevitável tocar nessa vulnerabilidade se você quer abordar o universo feminino.

A ‘SOMBRA’ DO SEGUNDO LIVRO

Na teia montada por ela, ouvimos as narrativas de personagens como a diretora da escola, um professor, um policial que viu a mãe saltar para a morte quando era criança, um viúvo sofrido, uma médium e uma “forasteira”, além das mulheres mortas. Reviravoltas vão desenterrando os podres de cada um e prendendo o leitor até o final. As múltiplas perspectivas, apresentadas de forma não cronológica, não foram unanimidade entre a crítica. Alguns classificaram o livro como confuso. O público, porém, está gostando. A obra, lançada em maio, já chegou ao topo da lista dos mais vendidos nos EUA e, entre os britânicos, ocupou o número um no ranking do “Sunday Times”. A autora não esconde que a pressão sobre ela depois de assinar um fenômeno mundial foi monumental, levando-a a buscar uma estrutura literária mais ambiciosa e experimental. Ela defende os riscos que correu:

— Gosto do imediatismo das narrativas na primeira pessoa. Comecei com quatro narradores, mas resolvi que o leitor precisava ouvir todas as vozes e decidir em quem acreditar. Ficou um “elenco” grande. Eu me arrisquei, foi difícil, mas nunca pensei em repetir a fórmula de “A garota no trem”. Para alguns eu acertei, para outros, não, mas já posso seguir em frente — resume ela, dizendo-se mais leve para pensar numa nova história, sem “a sombra do segundo livro”.

Mas antes há mais um filme no caminho de Paula. A Dreamworks já comprou os direitos de “Em águas sombrias”, e a escritora atuará como produtora-executiva.

— Gostaria que a história fosse mantida na Inglaterra, mas pode aparecer um diretor (ainda não escolhido) que diga que precisa muito que o cenário seja Massachusetts — brinca ela, ironizando a velha rivalidade entre americanos e britânicos e garantindo que, apesar de figurar na lista dos escritores mais bem pagos do mundo, continua levando a vida de sempre em Londres, sem ser reconhecida, sem sonhar com Hollywood e feliz em desaparecer.