Helio Gurovitz

A obra inacabada de Alberto Dines

A obra inacabada de Alberto Dines

Dines demonstra como, apesar de tudo, Zweig foi um visionário da democracia, do liberalismo e da integração europeia

HELIO GUROVITZ
27/05/2018 - 10h00 - Atualizado 27/05/2018 10h00

Alberto Dines me deu uma entrevista em 1992 para um trabalho de faculdade. O pretexto era um livro que acabara de lançar: Vínculos do fogo, uma história da Inquisição no Brasil (ou no Rio de Janeiro), narrada com base no caso célebre do dramaturgo Antônio José da Silva, alcunhado “o Judeu”, queimado em Lisboa num auto de fé em 1739. Redigida num tom de paródia ao estilo seiscentista, a obra resultava de anos de pesquisa minuciosa em alfarrábios dos dois lados do Atlântico, em especial nos arquivos da Torre do Tombo (Dines morou em Lisboa bem antes de isso virar moda). Nos séculos XVII e XVIII, concluiu ele, algo como metade da população carioca era formada por cristãos-novos que praticavam alguma forma de judaísmo em segredo. Produziu um compêndio com as histórias daqueles que se tornaram vítimas da Inquisição. Sem ser historiador, recolheu tantas informações, foi tão detalhista, que mesmo aquele volume de 1.058 páginas, numa luxuosa encadernação em capa dura, era insuficiente para contar tudo. Quem prestasse atenção veria na capa um discreto algarismo romano: “I”. Era, me contou Dines naquele dia, o primeiro de dois volumes. Até sua morte, na última terça-feira, o segundo não fora lançado.

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Tal lacuna se explica pela dedicação dele a outros projetos de caráter jornalístico ou acadêmico, mas também àquela que será, para além dessas atividades, a obra pela qual será lembrado: Morte no paraíso, livro lançado pela primeira vez em 1981, relançado várias outras no mundo todo, sempre em versão revista e ampliada, nunca definitiva. Nele, Dines relata o capítulo brasileiro na história de outro judeu, o escritor austríaco Stefan Zweig — cujo suicídio em Petrópolis, ao lado da mulher, em plena Segunda Guerra, quando o nazismo ainda avançava na Europa, chocou o mundo. Zweig foi em seu tempo um autor tão popular quanto são hoje Paulo Coelho ou J. K. Rowling. Veio parar no Brasil meio por acaso, em virtude do famigerado ensaio com aquele título que misturava profecia e maldição: “Brasil, um país do futuro”. Fugindo da perseguição na Europa, foi convidado pelo governo Vargas a ficar aqui — e aceitou. Na carta de suicídio, datada de 22 de fevereiro de 1942, registra “um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou, a mim e à minha obra, tão gentil e hospitaleira guarida; a cada dia aprendi a amar este país, mais e mais”.

Dines toma a carta do suicida para reconstituir os últimos passos de Zweig, depois do desmoronamento daquele que ele considerava seu “lar espiritual”: a Europa, na vertente consagrada pela Viena do fim do século XIX, o ambiente liberal em que as ruas eram “pavimentadas com cultura”, onde floresciam artistas como Klimt, Musil ou Mahler. Quando Dines tinha 8 anos, sua escola no Rio de Janeiro recebeu a visita de Zweig. “Vi-o aquela vez”, escreve. “Seu suicídio foi um dos primeiros contatos que tive com a morte e com jornais. Li-os para entender por que meu pai fora a Petrópolis no dia anterior e chegara tão arrasado. O episódio entrou de cambulhada em minha vida, trazendo uma noção de guerra sem fardas e tambores. Meses depois começaram a chegar as notícias do extermínio de judeus no Leste Europeu e, com elas, a certeza de que as famílias de meu pai e minha mãe não escapariam.”

Aos 12 anos, Dines ganhou do pai as obras autografadas de Zweig. Data daí o misto de obsessão e devoção que explica a benevolência com que trata os erros dele. O pacifismo de Zweig se revelou ingênuo na Segunda Guerra. Mesmo depois das leis raciais de Nuremberg, aceitava redigir um libreto para Richard Strauss, uma espécie de “ministro da música” nazista. Até que seus livros foram proibidos e queimados em fogueiras que nada deviam às seiscentistas…

Dines demonstra como, apesar de tudo, Zweig foi um visionário da democracia, do liberalismo e da integração europeia.

No Brasil, seu suicídio “teve o dom de empurrar uma sociedade ainda seduzida pelo fascismo na direção oposta”. É um recado cujo valor persiste nestes tempos em que autoritarismo, nacionalismo e militarismo seduzem novas gerações.

MORTE NO PARAÍSO
Alberto Dines, Rocco
2012 | 736 páginas | R$ 70








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