Principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, na Gamboa, Zona Portuária do Rio, ganhou neste domingo o título de Patrimônio Mundial da Unesco. A região representa o sofrimento dos escravos que foram tirados à força de suas terras de origem para uma vida de trabalhos forçados e degradação. Mais de quatro milhões de africanos foram escravizados no Brasil, e, agora, eles terão sua dor representada.
Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Kátia Bogéa, acompanhou as discussões promovidas pelo Comitê e ressaltou a importância do título.
- Em momentos de elevada intolerância, o reconhecimento de sítios sensíveis coloca em evidência a necessidade de compartilharmos nossa experiência em prol de uma visão mais humanista da sociedade global, a partir da observação do que o Cais do Valongo significou e da sua reapropriação social nos dias atuais, em especial, pelos descendentes afro-brasileiros, que numa atitude de superação reafirmam sua negritude e sua história para o Brasil, as Américas e todo o Mundo - disse Kátia, em discurso durante a cerimônia de premiação em Cracóvia, na Polônia.
Em seu perfil em uma rede social, o ex-prefeito Eduardo Paes postou uma mensagem exultando seu orgulho pelo Cais do Valongo ter ganho o título:
"Me lembro como se fosse hoje o dia em que visitava as obras do Porto Maravilha. Ao passar pela Barão de Tefé, fui alertado pela arqueóloga que lá trabalhava que os indícios de termos encontrado o cais do Valongo eram muito fortes. Que a história da Diáspora Negra seja sempre lembrada. Que as origens de nosso país, de nossa formação e de nossa cultura possam ficar marcadas. Que a violência dos homens possa ser sempre recordada para que não se repita. Que as injustiças, as desigualdades e os preconceitos - ainda tão presentes em nossa sociedade - possam ser superadas! Viva o Rio!"
Muito importante para a comunidade afro-brasileira e para a comunidade afro-americana em geral, o Cais do Valongo agora encontra-se no mesmo patamar da cidade de Hiroshima, no Japão, e do Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia, classificados como locais de memória e sofrimento. O local é o único cais de desembarque de africanos escravizados ainda preservado materialmente. Pela magnitude do que representa, coloca-se como o mais destacado vestígio do tráfico negreiro no continente americano.
Para o Iphan, O título de Patrimônio Mundial representa o reconhecimento de um exemplo único da história da humanidade que, apesar do processo escravagista produzido, propiciou uma inestimável contribuição dos africanos e seus descendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômico e social do Brasil, de modo direto, e da região, de modo indireto. O título também reconhece o valor universal excepcional do local, como memória da violência contra a humanidade representada pela escravidão, e de resistência, liberdade e afirmação, fortalecendo as responsabilidades históricas, não só do Estado brasileiro, como de todos os países membros da UNESCO.
O processo da candidatura
Apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, a candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo foi aceita no fim de 2015 pelo Centro do Patrimônio Mundial. A candidatura teve como base um dossiê que resgata a história ( http://portal.iphan.gov.br//uploads/publicacao/revista_valongo_12jun.pdf ) do tráfico de escravos na cidade em suas várias fases e analisa, detalhadamente, a importância histórica e social desse processo, além do significado do sítio arqueológico não só para os afrodescendentes, mas para todos os brasileiros.
Coordenado pelo antropólogo Milton Guran e elaborado pelo Iphan, em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, o documento foi finalizado após um ano de trabalho, onde são apresentados para avaliação o valor universal excepcional do bem, além dos parâmetros relacionados à sua proteção, conservação e gestão, conforme estabelecem as diretrizes operacionais da Convenção do Patrimônio Mundial, Natural e Cultural, de 1972.
Escavação resgata o passado
Era o ano de 2011 e a Zona Portuária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro estava num processo de escavação do passado, preparando a região para o futuro. O porto estava num período de obras. E a descoberta — ou melhor redescoberta — do Cais do Valongo ocorreu neste contexto de revitalização da área. Obedecendo a uma legislação que obriga a realização de monitoramento arqueológico em locais da cidade com importância histórica, as intervenções no trecho que compreendia a Avenida Venezuela, a Rua Camerino (antiga Rua do Valongo) e seu entorno tiveram um trabalho de pesquisa, com objetivo de resgatar fragmentos de memória. A arqueóloga responsável por vasculhar o subsolo daquele pedaço do Rio era a professora Tania Andrade Lima, que confessa ter aceitado o projeto com um único e principal objetivo: encontrar vestígios do pedaço do que foi o principal porto de entrada de negros escravizados no Brasil e nas Américas.
— A localização do Cais do Valongo era de conhecimento de todos os que passavam pelo local, pois na coluna erguida em homenagem à Imperatriz Teresa Cristina há uma placa na base informando que ali existiu o cais onde ela desembarcou, construído sobre o Cais do Valongo — explica — Tão logo a equipe de obras chegou e começou a abrir o asfalto para a passagem de uma rede de drenagem, foram encontradas pedras que claramente eram do Cais da Imperatriz. A pesquisa arqueológica começou, e 60cm abaixo deste cais encontramos o Cais do Valongo. As escavações abrangeram cerca de quatro mil metros quadrados.
O sítio que concorre ao título de Patrimônio da Humanidade é composto por vestígios do calçamento de pedras, construído a partir de 1811 para o desembarque dos africanos escravizados trazidos para trabalhar no Brasil, além de porto de pedra construído para trazer a princesa Tereza Cristina de Bourbon, esposa do Imperador Dom Pedro II, em 1843. A área corresponde a da atual Praça do Comércio e seus limites são a Avenida Barão de Tefé, a Rua Sacadura Cabral e lateral do Hospital dos Servidores do Estado. Nas cercanias do porto, havia armazéns, onde os negros recém-chegados eram expostos para venda, o Lazareto, local de tratamento dos doentes, e o Cemitério dos Pretos Novos, onde os que morriam logo na chegada eram enterrados.
Além de achar as estruturas de pedra, as escavações, iniciadas em janeiro de 2011, encheram sete contêineres, com centenas de milhares de objetos como dentes de porco, colares e rochas recolhidas no entorno. Muitas das peças eram usadas em rituais religiosos ou como amuletos pelos negros que aportaram no Cais do Valongo entre 1811 e 1843. Entre as raridades, havia uma caixinha de joias, esculpida em antimônio, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa. Dentro da caixa, foram encontradas 1.700 miçangas com cerca de 1 milímetro de diâmetro. Este material, quase 500 mil peças, permanece sob a guarda da prefeitura, num dos galpões da Gamboa, que deveria abrigar o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (LAAU). Um vistoria recente realizada pelo Iphan constatou “que faz-se necessária a execução de soluções urgentes pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, fiel depositária e responsável pelos bens arqueológicos ali guardados”. Segundo o órgão, os envolvidos foram notificados, “ para que sejam tomadas as medidas cabíveis para garantia da proteção do acervo.” O presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, o arquiteto Augusto Ivan, no entanto, afirma que todo o material está bem acondicionado e seguro, mas admite que o projeto do laboratório deve sofrer mudanças para se adaptar aos tempos de crise.
Para o antropólogo Milton Guran, coordenador do grupo de trabalho que apresentou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, o cais é o mais significativo lugar de memória da diáspora africana fora da África.
— Trata-se do único vestígio material de um porto de desembarque de africanos nas Américas. Não existe no continente nenhum monumento, nenhum lugar de memória com a força simbólica e histórica do Cais do Valongo — ressalta Guran, que é pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF e integrante do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo, da Unesco. Ele avalia que o Valongo fez renascer o sonho de um turismo da memória africana na cidade. Mas, para que ele cumpra seu papel, diz ele, é preciso que se fortaleçam outros pontos da Diáspora Negra naquela região.
— Ele concorre como um sítio de memória sensível que representa uma tragédia da humanidade que a própria humanidade não quer que se repita, no mesmo nível da cidade de Hiroshima, no Japão, e do Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia, classificados como locais de memória e sofrimento. Mas ele faz parte de um eixo que inclui outros pontos da memória africa, como a Pedra do Sal, o Instituto dos Pretos Novos, e o futuro Museu da Diáspora Africana, cujo projeto foi apresentado na candidatura, e deve ser implantado pelos entes responsáveis por esta candidatura — diz Guran.
Segundo o IPHAN, o título de Patrimônio Cultural da Humanidade representará “o reconhecimento de um exemplo único da história da humanidade que, apesar do processo escravagista produzido, propiciou uma inestimável contribuição dos africanos e seus descendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômico e social do Brasil, de modo direto, e da região, de modo indireto. O título também reconhece o valor universal excepcional do local, como memória da violência contra a humanidade representada pela escravidão, e de resistência, liberdade e afirmação, fortalecendo as responsabilidades históricas, não só do Estado brasileiro, como de todos os países membros da UNESCO.”