“O novo partido nasce longe das benesses oficiais, mas perto do pulsar das ruas”, dizia o anúncio da fundação do PSDB. O partido surgiu como uma dissidência do PMDB, do então presidente José Sarney, liderado por um grupo, nas palavras do manifesto, “chocado com o espetáculo do fisiologismo político e da corrupção impune”. Mas isso foi no distante dia 25 de junho de 1988. Em 12 de junho de 2017, após uma reunião, o PSDB anunciou que manterá sua aliança com o PMDB, do presidente Michel Temer, apesar das evidências de um espetáculo de fisiologismo e de corrupção impune. “O PSDB não fará nenhum movimento agora no sentido de sair do governo. Se os fatos mudarem, terão outras análises”, disse o senador José Serra (SP), um dos signatários daquele manifesto de 1988, ex-ministro de Michel Temer. “É um governo que tocou adiante compromissos que assumiu conosco. Isso é visto como algo positivo.”
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O dilema entre ficar e sair do governo é flagrante entre os tucanos desde 17 de maio, quando o jornal O Globo divulgou o teor de uma conversa entre Temer e o empresário Joesley Batista, do grupo JBS. No dia seguinte, o tucano Bruno Araújo anunciou que deixaria o Ministério das Cidades. Mudou de ideia. A direção do partido conteve o ímpeto da bancada de deputados – preocupados com a sobrevivência política nas eleições de 2018 – com a promessa de discutir a permanência no governo. Na visão de muitos, a reunião do dia 12 de junho serviria para formalizar o desembarque após o julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – provocado por uma denúncia de crime eleitoral feita pelo próprio PSDB. Mesmo após o escárnio que foi o julgamento – em que o tribunal descartou provas que ele mesmo incluíra no processo –, o partido decidiu ficar no governo.
Nem todos viram a permanência no governo Temer como algo positivo. Voto vencido, o presidente interino do PSDB, senador Tasso Jereissati (CE), atacou a decisão do partido que ele próprio comanda. “Pregamos ficar mais desligados do governo do toma lá dá cá, do fisiologismo”, disse. Em uma carta aberta, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que deixar a Presidência seria um “gesto de grandeza” de Temer e falou, inesperadamente, em antecipação de eleições gerais. Durante o impeachment de Dilma, que alçou Temer à Presidência, Fernando Henrique foi um dos fiadores da “Ponte para o futuro”, o programa de governo do PMDB. Em dezembro de 2016, quando oito ministros foram citados nas delações premiadas de executivos da Odebrecht, Fernando Henrique rebatizou a ponte com um nome mais à altura de sua precariedade: “pinguela”. Na semana passada, sugeriu pular fora da pinguela. “Se tudo continuar como está com a desconstrução contínua da autoridade, pior ainda se houver tentativas de embaraçar as investigações em curso, não vejo mais como o PSDB possa continuar no governo. Preferiria atravessar a pinguela, mas se ela continuar quebrando será melhor atravessar o rio a nado e devolver a legitimação da ordem à soberania popular.”
No dia 12, o PSDB não prometeu amor incondicional a Temer. O partido fala em rediscutir o apoio conforme novos fatos surgirem – como a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Temer, que já está no forno. Ao esperar por fatos novos, o partido faz mais que reafirmar sua proverbial posição em cima do muro. Acaba por escolher um lado. O lado errado do muro. Para alguns tucanos históricos, a paciência acabou. “Esse movimento terminou de encerrar o PSDB que uma vez existiu”, afirma Ricardo Semler. Eleito um dos empresários mais inovadores do mundo, Semler deixou o partido na semana passada, depois de 26 anos. “Não consigo mais descrever a ideologia do partido. Ele está aberto a terceiros.” O jurista Miguel Reale Jr., ministro da Justiça de Fernando Henrique e coautor do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, também anunciou sua desfiliação, após 27 anos. “O PMDB era evidentemente vitimado por corrupção, isso era sabido com Romero Jucá, com Renan Calheiros. Mas se imaginava que, assumindo a Presidência da República, não fosse ter continuidade”, diz Reale Jr. “Quando o próprio presidente se vê envolvido em fatos nada republicanos, e graves, o PSDB não pode fazer de conta que nada aconteceu. No momento em que o PSDB faz de conta que não há corrupção, quando escancaradamente há, ele perde o diálogo com seu eleitorado.”
Ao manter-se em um governo cercado de denúncias de corrupção, o PSDB arrisca-se a sofrer, ele mesmo, uma debandada como a que deu origem ao partido. A revoada no ninho tucano por ora não é tão intensa quanto a que esvaziou o PT após o escândalo do mensalão, em 2004 – quando quadros como Chico Alencar, Cristovam Buarque e Plínio de Arruda Sampaio deixaram o partido, e o PSOL foi fundado. Mas o risco existe. O custo eleitoral de se apegar a malfeitos é tangível. Depois do mensalão, o PT manteve-se no poder. Elegeu e reelegeu presidente, deputados, prefeitos. Mas quando a Lava Jato avançou na corrupção cometida por integrantes do partido, então no poder havia 13 anos, o efeito foi devastador. Nas eleições municipais de 2016, o PT perdeu 60% (378) das prefeituras que conquistara em 2012. Em parte porque prefeitos abandonaram o partido, em parte porque eleitores resolveram punir o PT. Foi o que ocorreu com o petista Fernando Haddad, candidato à reeleição em São Paulo. Desde 1988, o partido chegava pelo menos ao segundo turno. Em 2016, ele foi atropelado, já no primeiro turno, por um novato: o tucano João Doria Jr., um dos primeiros políticos a liderar protestos contra a corrupção. Porto Alegre elegeu Nelson Marchezan Júnior, até então um dos mais inflamados defensores do impeachment na Câmara. Com ou sem bons motivos, os tucanos tornaram-se depositários do voto anticorrupção da massa de classe média que, em 2016, levou 3,3 milhões de pessoas às ruas, nas maiores manifestações já registradas no país. O PSDB foi o partido que mais cresceu nas eleições municipais – 15,5%, de 695 para 803 prefeituras. Ao manter-se dentro de um governo agora na mira da lei, o partido corre o risco de perder esse capital.
Deixar o governo não é um cálculo simples, contudo. Até a véspera do julgamento do TSE, era essa a decisão. No dia 7, em uma sala em Brasília, combinavam como seria jogado o jogo na reunião do dia seguinte, marcada por seu presidente em exercício, o senador Tasso Jereissati. O encontro examinaria, mais uma vez, a possibilidade de o partido deixar o governo Temer. O placar estava 9 a 1 pela saída, quando uma nova leva de tucanos pousou. Cardeais como Serra e Aloysio Nunes Ferreira, ministro das Relações Exteriores, são favoráveis a suportar o desgaste de integrar um governo sobre o qual pesam muitas, diversas, acusações de corrupção impostas pela Lava Jato.
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Não se trata de um jogo no qual o partido escolherá a melhor saída, mas um jogo de disputa de interesses de vários atores partidários. Presidente do Instituto Teotônio Vilela, ligado ao partido, José Aníbal (SP) protestou. Argumentou – nem contra, nem a favor da saída – mas a favor da reunião do dia seguinte; o partido deveria esperar o final do julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE. “Vamos adiar, vamos pelo menos esperar acabar esse julgamento”, disse Aníbal, que também é suplente de Serra no Senado. Os presentes avaliaram que esperar mais era um caminho razoável. “O roteiro do Zé é melhor”, disse o senador Cássio Cunha Lima (PB). Adepto da saída, Tasso concordou com o adiamento, mas surpreendeu. “Então eu marco a reunião para segunda [12], às 17 horas”, disse – e encerrou a conversa. Assim, o PSDB marcou uma reunião que colocava pressão sobre o próprio partido e sem acertar previamente uma decisão. Num erro político primário, ignorou a velha lição de raposas políticas de que reunião só é convocada quando tudo já está acertado.
Na reunião, Tasso foi incisivo. “Nós temos de sair”, disse. “Os deputados querem isso.” Apesar da opinião, Tasso foi equilibrado na condução do encontro. “E se esses caras [PMDB] derem certo sem nós, Tasso?”, questionou um deputado. Prevaleceu, então, a postura de cautela, defendida por Serra, Aloysio e governadores, entre eles o paulista Geraldo Alckmin, que joga para ser candidato à Presidência em 2018. “O Keynes, que foi o maior economista do século passado, tem uma frase que eu uso sempre: ‘Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião’. Você faz o quê? Se os fatos mudarem, há outras análises”, disse Serra, ao anunciar o resultado da reunião.
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Se o PSDB sair do governo, as chances de Temer concluir o governo encolhem bastante. A curto prazo, isso pode ser ruim para os tucanos. Numa eleição indireta, acreditam, Rodrigo Maia (DEM) é o favorito. É o presidente da Câmara, e os deputados são maioria no eleitorado de uma escolha indireta. Numa improvável antecipação da eleição direta, o favorito é Lula, líder nas pesquisas de intenção de voto – apesar de contar com uma rejeição monumental, que complicaria sua vida num eventual segundo turno.
O PSDB foi o grande patrocinador do governo Temer, ao pedir o impeachment de Dilma, endossar o programa de governo, oferecer apoio parlamentar e indicar ministros. Desembarcar do governo seria, na visão de alguns tucanos, sinal de traição política. Para outros, seria manifestação de cinismo. Com ou sem provas, já se sabia desde o começo que o governo Temer não era formado por santos. Semanas depois do impeachment, ministros próximos a Temer começaram a cair, acusados de corrupção. A revelação de diálogos indecorosos, na delação premiada de Joesley Batista, apenas deslocou a crise das cercanias do gabinete presidencial para a cadeira do presidente. Os tucanos a favor da permanência no governo argumentam também que o partido concorda na íntegra com a impopular agenda de reformas do Palácio do Planalto, e que abandoná-lo agora significaria o risco de ir embora da festa (a possível retomada do crescimento da economia) antes da chegada do chope e dos salgadinhos. Carregar o ônus sem ter o bônus.
Questões programáticas à parte, deixar o governo Temer significa se afastar da máquina do Estado. Hoje o PSDB tem centenas de cargos de segundo e terceiro escalões, facilidade para encaminhar emendas parlamentares, além de quatro ministérios: o da Secretaria de Governo, de Relações Exteriores, das Cidades e dos Direitos Humanos. A Pasta das Cidades é a responsável por encaminhar projetos de municípios – quase uma varinha mágica, capaz de garantir a eleição de muitos deputados. Num país em crise econômica, há menos tinta na poderosa caneta dos ministros. Ainda assim, o poder da máquina é importante – e deve se tornar ainda mais, numa eleição com financiamento de campanha por empresas proibido. “Estamos passando por uma transição política e nenhum partido entendeu o que será essa nova eleição”, afirma Claudio Ferraz, professor de economia da PUC-RJ. “Com poucos recursos, quem vai abrir mão do poder de estar no governo?”
Em meio à revolução provocada pela Operação Lava Jato, desembarcar do governo Temer pode não ser suficiente para devolver ao PSDB a bandeira da moralidade pública. O partido não afastou Eduardo Azeredo, ex-governador de Minas Gerais condenado em primeira instância a 20 anos de prisão pelo mensalão mineiro, inspirador do mensalão do PT. Aécio Neves, alvo de cinco inquéritos na Lava Jato, grampeado por Joesley ao pedir um pagamento de R$ 2 milhões, continua presidente do partido – está apenas licenciado. Na reunião do dia 12, Aécio foi aplaudido – numa versão tucana do coro “guerreiro do povo brasileiro”, entoado por petistas para homenagear corruptos como José Dirceu e Delúbio Soares. Serra foi acusado por Pedro Novis, ex-presidente do grupo Odebrecht, de receber mais de R$ 6 milhões, em doações eleitorais via caixa dois. Pré-candidato à Presidência em 2018, o governador Alckmin é investigado por corrupção nas obras do metrô. Tudo ainda está sendo investigado, mas o efeito político das acusações já enterrou as pretensões presidenciais de Aécio e Serra.
Num cálculo frio, evitar a punição de quadros populares, porém, pode valer a pena para o partido. O economista Claudio Ferraz é autor de um estudo que mostrou como prefeitos aprovados pela auditoria da Controladoria-Geral da União têm mais chances de se reeleger, em relação àqueles cujo governo não foi auditado. O mesmo estudo mostrou que prefeitos reprovados pela CGU em ano de eleição têm 30% menos chances de reeleição. “Mas quando o político envolvido com corrupção é muito popular, os partidos fazem um cálculo. Numa eleição proporcional, você precisa de gente que leve muito voto. Se você acha que essa pessoa, apesar de manchar o partido, vai carregar votos capazes de eleger cinco deputados, pode valer a pena”, diz Ferraz.
O custo político de compactuar com a corrupção está claramente mais alto, mas talvez ainda não seja proibitivo. Com quase todos os grandes partidos envolvidos em escândalos, e com casos de impunidade como a absolvição da chapa Dilma-Temer no TSE, é possível que o eleitor fique desiludido e, saturado de más notícias, vote indistintamente em candidatos honestos ou corruptos. “O eleitor pode tolerar por décadas candidatos corruptos, sem jamais gostar. Ele não pune a corrupção quando acha que ninguém mais vai fazer isso e quando enxerga outras prioridades”, diz Ray Fisman, professor de economia da Universidade de Boston, autor de estudos sobre corrupção e sucesso eleitoral. “Para haver uma mudança, é preciso mobilização e uma alternativa viável. A Lava Jato tem se mostrado uma fagulha mobilizadora. No entanto, se não surgirem alternativas viáveis, o eleitor pode continuar votando nos de sempre.” Na Itália, a Operação Mãos Limpas, que inspira a Lava Jato, representou essa fagulha. Na eleição de 1994, o Partido Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), que dominaram a política italiana nas décadas anteriores, foram pulverizados.
Apostar na apatia e no poder da máquina pode dar certo no curto prazo, mas é um suicídio institucional. “A decisão de ficar no governo Temer é matemática de políticos autocentrados: ‘Se eu fico aqui, pelo menos faço umas reformas, evito um mal maior’”, diz Semler. “Ao mesmo tempo, o partido sabe que está ganhando apenas algumas rodadas, numa luta de boxe que não vai chegar ao 10º round. Pensa em evitar um nocaute no 3º, em estender a luta até o 5º.” Para almejar a liderança política, um partido precisa ter valores. Quando os princípios se vergam às conveniências, a legenda perde seu discurso e sua alma. “Se ficarmos como estamos, nós vamos para a vala comum. Vamos para um suicídio coletivo”, diz o senador tucano Ricardo Ferraço (ES). “Popularidade é uma coisa que vai e volta. Mas credibilidade e reputação, não. A manutenção dessa posição de apoio ao governo atinge nossa reputação e nossa credibilidade. Parece que estamos apegados a cargos. Isso é muito ruim. Reputação e credibilidade são tudo, são o oxigênio.”
O PSDB poderia estar em situação confortável, a um ano da eleição presidencial. Ao ocupar a oposição nos 13 anos de PT na Presidência, o partido esteve longe dos escândalos do governo federal. Historicamente, é a referência do antipetismo, em alta desde o esgotamento político do governo Dilma. O discurso tucano de austeridade fiscal ganhou força, conforme a gastança petista trouxe de volta o desemprego. No ninho tucano surgiu João Doria Jr., o primeiro presidenciável de peso até agora isento de suspeitas na Lava Jato. Em relação ao apoio ao governo, Doria também está no muro. “Não foi uma conversa adequada para um presidente da República”, disse, na semana passada, ao se referir ao encontro de Temer com Joesley. “Significa um erro ético e moral, mas não é um fato determinante para impeachment.”
Abraçado a Temer, o partido que poderia evocar o novo se mostra velho. “O eleitor tucano está indignado, nas redes sociais, com essa atitude e essa participação nesse governo”, diz o cientista político Bolívar Lamounier. “Veja o que aconteceu na França na eleição legislativa. Emmanuel Macron praticamente destruiu o sistema partidário da França, porque captou esse sentimento da opinião pública que é contra a corrupção e é contra a política envelhecida. Então o PSDB já está sendo visto como política envelhecida.” O partido que nasceu para se diferenciar do PMDB está cada vez mais parecido com as velhas práticas fisiológicas e patrimonialistas da política brasileira.