Estátua de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

O Rio de cinco grandes nomes da literatura

Um passeio pelas ruas que marcaram Machado, João do Rio, Nelson Rodrigues, Drummond e Clarice Lispector

Estátua de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana - Fernando Lemos / Agência O Globo

por Sérgio Luz

RIO — Há cidades que se confundem com os autores que as descreveram. Suas ruas, casas, restaurantes, cafés, prédios, moradores, sujeira, violência, beleza e pulsação inspiraram obras-primas de grandes nomes da literatura: a Dublin de James Joyce, a Paris de Victor Hugo e Patrick Modiano, a Londres de Charles Dickens e Virginia Woolf, e a Newark de Philip Roth são alguns desses exemplos. Mas nenhuma grande metrópole tem apenas uma cara. Fatores como o local de moradia, o momento histórico e a condição financeira proporcionam milhares de experiências distintas para cada pessoa. No Rio, isso não é diferente. A cidade de Lima Barreto, homenageado da Flip ( Festa Literária Internacional de Paraty ) deste ano, que segue em pleno vapor até domingo, é muito diferente para Machado de Assis, o autor nacional mais celebrado de seu tempo. Inspirado por esse Rio que abraçou e instigou tantos escritores, o Rio Show saiu numa longa caminhada à procura dos rastros e dos resquícios da cidade de cinco grandes autores brasileiros, que nasceram ou se tornaram cariocas com o passar dos anos ou pela força das circunstâncias: Machado de Assis, João do Rio, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Bom passeio literário!

Machado de Assis

Apesar de ser conhecido como “Bruxo do Cosme Velho”, bairro onde morou por muitos anos, Machado de Assis (1839-1908) foi um homem de lugares distintos no mapa carioca. Nascido no Morro do Livramento, o autor de obras-primas como “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas de Brás Cubas” utilizou o Rio como cenário e personagem em praticamente todos os seus projetos literários.

— A cidade interfere, está presente, cria uma ambientação em sua obra. Ele produz uma crônica dela para falar do bonde, da chegada da eletricidade. São vários episódios que entram na narrativa e que servem como documento de sua história — analisa a jornalista e professora universitária Daniela Name, idealizadora, ao lado de Gabriela Dias, do aplicativo “Rio de Machado” (disponível para Android e iOS), que traça um mapa pelos locais de romances do fundador da Academia Brasileira de Letras.

Hoje situada no número 203 da Av. Presidente Wilson, a ABL, que eternizou Machado com uma estátua em sua sede, foi motivo de desejo e sofrimento para outro autor afro-descendente, Lima Barreto, que tentou ingressar na academia em três oportunidades, todas sem sucesso.

— Em sua biblioteca, o Lima tinha todos os livros do Machado. Mas, como quer se construir como um anti-establishement , ele se opõe à figura estabelecida do Machado. O Lima era um forasteiro na alta roda — afirma a biógrafa Lilia Moritz Schwarcz.

‘Enquanto o Lima batia ponto no Bar Papagaio, o Machado era assíduo na livraria Garnier. Frequentam a mesma região, mas locais distintos. Havia um choque generacional’

- Lilia Moritz Schwarcz Escritora

Essa relação de amor e ódio expõe a ambiguidade do caráter do grande homenageado da Flip.

— O Machado era o bem-sucedido, um “Global”, uma estrela literária, o reconhecido, da ABL, best-seller, que se vestia com o melhor fraque. E era mulato, como o Lima. Mas ele dizia que o Machado não assumia essa negritude, e que ele ambientava sua obra no mundo dos ricos — comenta Daniela.

A crítica e professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão resume esse atrito:

— O Machado tinha horror ao perfil do Lima, que sempre deu atenção aos pobres e aos marginais. Ele frequentava feiras, mercadinhos, quermesses. O Machado, nem com luvas de pelica. O Machado se deu muito bem na vida. E o Lima viveu a tragédia da tentativa de ascensão social — conclui.

RUA DO OUVIDOR: ANTIGO CORAÇÃO DA CIDADE

E essa diferença se mostra na Rua do Ouvidor, a principal via urbana fluminense antes da abertura da antiga Avenida Central (atual Rio Branco).

— Enquanto o Lima batia ponto no Bar Papagaio, o Machado era assíduo na livraria Garnier. Frequentam a mesma região, mas locais distintos. Havia um choque generacional — diz Lilia.

‘O Machado tinha horror a essa homenagem a quem ele considerava um traidor do país (D. Pedro I). Por isso, usou sua posição na imprensa para lutar contra a instalação dessa estátua’

- Daniela Name Criadora do aplicativo 'Rio de Machado'

Via de comércio farto, sedes de jornais, livrarias, editoras, cafés e restaurantes, a Ouvidor está presente em diversas obras do Bruxo, como em “Dom Casmurro”, quando Bentinho narra a queda de uma distinta senhora.

“Este gosto de imitar as francesas, dizia-me José Dias, andando e comentando a queda, é evidentemente um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciência, e não este tique-taque afrancesado...”, diz um trecho do clássico.

Apesar de suas tramas se passarem também em locais como o Engenho Novo, a Glória, o Cais do Valongo e o Catumbi (como em “Memórias póstumas de Brás Cubas), Daniela acredita que a Ouvidor seja a síntese do Rio machadiano:

— Era lá que tinha a Garnier, que também era a editora que o publicava. Hoje, sua irmã seria a livraria Folha Seca, também ponto de escritores e intelectuais. Na passagem da queda da senhora na Ouvidor, ele reflete sobre essa mudança de ritmo da cidade, percebendo a chegada de um Rio mais veloz e moderno.

Perto dali, Machado frequentava cafés como a Casa Cavé (Rua Sete de Setembro) e Confeitaria Colombo (Rua Gonçalves Dias), onde se encontrava com colegas como Ruy Barbosa e Olavo Bilac. Subindo a Sete de Setembro rumo ao Saara, chega-se à Praça Tiradentes, o antigo Largo do Rossio, que abriga a estátua de Dom Pedro I.

— O Machado tinha horror a essa homenagem a quem ele considerava um traidor do país. Por isso, ele usou sua posição na imprensa como articulista e colunista para lutar contra a instalação dessa estátua — conta Daniela.

A rua dos Ourives (atual Miguel Couto) foi cenário de "Memórias póstumas de Brás Cubas". - Fernando Lemos / Agência O Globo

Já a Rua dos Ourives, rebatizada como Miguel Couto em 1936, abriga uma passagem na qual Brás Cubas vai comprar um presente para sua pretendente, Marcela.

— A partir da metade do século XVIII, a Rua dos Ourives vai passar a abrigar as oficinas dos joalheiros. Era outra lógica de nomenclatura — afirma Daniela.

Atualmente, a rua mantém as fachadas de alguns casarões centenários e comércio popular. E as joias? Restaram apenas lojas de bijuterias.

João do Rio

Cadeira de engraxate na Cinelândia: cronista do Rio em ebulição da Belle Époque, João do Rio denunciava o que chamava de "profissões da miséria". - Fernando Lemos / Agência O Globo

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, mais conhecido como João do Rio (1881-1921), escreveu no ensaio “A rua”, um dos textos do clássico “A alma encantadora das ruas”, que “para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias... É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs... É preciso ser aquele que chamamos flâneur... Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.”

Imbuído desse espírito, flanamos pelas ruas do Centro para buscar os “tipos urbanos” descritos pelo autor.

‘Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu’

- João do Rio sobre a estátua da Praça Tiradentes

Na Cinelândia, mendigos, turistas, desocupados, pessoas comuns lendo o jornal, trabalhadores caminhando com urgência; na Senador Dantas, sobrados tombados de arquitetura art nouveau tornaram-se restaurantes de comida a quilo com decoração duvidosa; no Largo da Carioca, feirinha de roupas com provadores portáteis, artesanato, quinquilharias eletrônicas, orelhões com panfletos de prostitutas; na Sete de Setembro (a Casa Cavé, na foto à direita), lojas de moda popular, os trilhos do VLT (o bonde contemporâneo), prédios centenários escondidos entre edifícios comerciais espelhados e amorfos, pequenos toldos coloridos emulando o auge de um Rio que já não existe mais.

— O final do século XIX é um momento muito especial para o Rio, que recebia a ebulição da modernidade europeia, que reunia discrepâncias muito fortes. Isso envolve a criação de uma república das letras. Eles faziam desse lugar condição de trabalho, conhecimento e arte. Eles invertem a relação de que a cidade deu a eles a matéria-prima. De certa maneira, foram esses escritores que criaram o imaginário coletivo dessa cidade — defende o historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues, autor do livro “João do Rio: a cidade e o poeta”.

O Rio dos Escritores: Machado de Assis e João do Rio

  • Fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis tem uma estátua em sua homenagem em frente à sede da ABL, no Centro. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • A rua do Ouvidor, que abrigava a livraria Garnier, editora da obra de Machado, aparece em diversos de seus romances, como "Dom Casmurro". Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Machado de Assis costumava frequentar a Confeitaria Colombo acompanhado por colegas como Olavo Bilac e Ruy Barbosa. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Em "Memórias póstumas de Brás Cubas", o anti-herói do livro conta que foi à rua dos Ourives (atual Miguel Couto) para comprar um mimo para sua pretendente, Marcela. Hoje há apenas comércio popular e lojas de bijuterias. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • A estátua de Dom Pedro I, na Praça Tiradentes, era detestada tanto por Machado quanto por João do Rio, que escreveu: "Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu." Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Cadeira de engraxate na Cinelândia: cronista do Rio em ebulição da Belle Époque, João do Rio denunciava o que chamava de "profissões da miséria". Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Flâneur da então capital federal, João do Rio escreveu que "flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.” Na foto, os sobrados da rua Uruguaiana. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

Assim como em Machado, a estátua de Dom Pedro I na Praça Tiradentes dava calafrios em João do Rio: “Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu”, escreveu o cronista.

— O João fazia denúncia das situações da cidade, a mesma para a qual gostava de produzir uma estética. Ele não só olhou a cidade, como criou um espaço de transformação dela. Ele criava uma forma crítica, denunciava as “profissões da miséria”, os meninos de rua. Ele tentou dar conta de um universo muito amplo do Rio, entre crônicas, teatro e romances — explica Rodrigues.

ATRITO COM LIMA BARRETO

Morador de locais como a Rua do Lavradio, a Gomes Freire e o então desértico bairro de Ipanema, João do Rio também não caía nas graças de Lima Barreto.

— Ele era mulato e homossexual. E sua entrada polêmica na ABL gerou ainda mais raiva no Lima. O João gostava de futebol, Lima odiava. Ele não gostava da persona festiva do João do Rio, que fazia propaganda de si mesmo — conta Rodrigues.

De acordo com o historiador, João do Rio não encontra paralelos na crônica atual:

— Não sobrou nada daquele Rio, só o imaginário. E comparações, como as reformas profundas daquela época, capitaneadas por Pereira Passos, com as da gestão Eduardo Paes. Com escrita refinada, erudição e reflexão, João do Rio foi capaz de definir a dimensão de toda a vida carioca — define.

Nelson Rodrigues

Vista lateral do Teatro Municipal, no Centro. - Fernando Lemos / Agência O Globo

Na biografia “O anjo pornográfico”, o jornalista e escritor Ruy Castro diz que, além do jornal, a rua foi o principal palco de Nelson Rodrigues (1912-1980), não o teatro.

Nascido no Recife, o dramaturgo, contista, romancista e cronista veio com sua família para o Rio aos 4 anos, em 1916. Seu primeiro endereço na então capital federal foi no extinto número 135 da Rua Alegre (atual Almirante João Cândido Brasil), na Aldeia Campista, entre o Maracanã e a Tijuca. Ali, Nelson veria muitos dos excêntricos, exagerados e demasiado humanos personagens que habitariam as suas tragédias suburbanas.

‘Os personagens de Nelson moram na Zona Norte, trabalham no Centro e prevaricam na Zona Sul.’

- Ruy Castro resumindo a geografia da obra rodriguiana

Depois, Nelson morou em bairros como Tijuca, Andaraí, Copacabana, Ipanema e Leme (já no fim da vida). Mas a Zona Norte sempre foi seu norte criativo. “Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da Praça Saens Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte”, afirmava o autor da peça “Boca de Ouro” e dos contos de “A vida como ela é”, publicadas no jornal “Última Hora’’.

— Ele conheceu os subúrbios no seu apogeu: acolhedores, românticos, cheios de vizinhas neuróticas e faladeiras — conta Ruy Castro, que também menciona o bairro da adolescência de Nelson. — A jovem e quase deserta Copacabana dos anos 1920. Ele morava ali na altura da Rua Inhangá (onde hoje há uma estátua em sua homenagem). O cheiro do mar o fazia pensar em “florestas menstruadas” — diz Castro.

O biógrafo destaca outros endereços mencionados por Nelson:

— Mas há também inúmeras referências, como Rua do Ouvidor, Avenida Passos, Largo da Carioca, principalmente nas crônicas de jornal. A região do Maracanã, então, nem se fala. No (romance) “Asfalto selvagem”, a ação se passa principalmente em Vaz Lobo, com incursões importantes pelo Largo do Machado e por São Conrado. Mas, basicamente, é isto: os personagens de Nelson moram na Zona Norte, trabalham no Centro e prevaricam na Zona Sul — resume.

Se a vida de Nelson foi passada dentro de redações — numa delas, da “Crítica”, jornal de seu pai, na Rua do Carmo, ele testemunhou a primeira das muitas tragédias pessoais de sua vida, o assassinato de seu irmão Roberto Rodrigues —, a obra de um dos maiores dramaturgos brasileiros da história nasceu nos palcos cariocas.

No dia 9 de dezembro de 1942, a primeira peça de Nelson, “A mulher sem pecado”, estreou no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, sem causar estardalhaço. Pouco mais de um ano depois, no entanto, “Vestido de noiva” (para muitos, sua obra-prima), dirigida por um tal polonês chamado Zbigniew Marian Ziembinski, seria ovacionada por um Teatro Municipal lotado. E revolucionaria o teatro nacional.

Segundo Ruy, Nelson não seria o mesmo, se tivesse permanecido no Recife:

— A única peça em que identifico o cenário como pernambucano é “Senhora dos Afogados”. Tudo o mais, crônica, conto, novela, romance, teatro, cinema, papo furado no botequim, é absolutamente carioca — comenta o escritor.

Nelson, que frequentou a Colombo por um grande período, também gostava de coisas mais simples.

— Ele tomava cafezinho nos botequins nas proximidades do GLOBO e do “Jornal dos Sports”, este na Praça da Cruz Vermelha. Talvez ainda estejam de pé — especula.

Clarice Lispector

Clarice era habituée do restaurante La Fiorentina, no Leme, aonde ia com amigas como Olga Borelli e Nélida Piñón. No alto, à esquerda, uma foto dela ao lado dos filhos. - Gustavo Miranda / Agência O Globo

Nascida em Tchetchelnik, na Ucrânia, Clarice Lispector (1920-1977) foi a mais internacional dos escritores “cariocas” desta reportagem. Casada por anos com o diplomata Maury Gurgel Valente, a autora de “A paixão segundo G.H.” viveu em países como a Itália, os EUA e a Suíça. Criada no Nordeste, onde chegou aos 2 meses de idade, passando rapidamente por Maceió, Clarice ficou no Recife até os 14 anos, quando veio com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro.

‘Há pouquíssimos relatos da Clarice no dia a dia do bairro. Mas há relatos dela ser vista na feira. Outro lugar que ela sempre ia era às bancas de jornal. E ela frequentava a praça com o Ulisses, no fim da tarde. Observava as pessoas e depois ia para casa’

- Teresa Montero Biógrafa

Aqui, ela estudou direito na então Universidade do Brasil (atual UFRJ), forjou seu característico estilo literário e viveu em locais como Tijuca e Catete. Mas foi o Leme, bairro onde passou mais tempo, 18 anos (de 1959 até sua morte, em 1977), que se tornou referência de seu Rio.

— A Clarice não era uma escritora de demarcar muito as paisagens e os espaços. O ritmo dela era muito interno. No conto “O amor”, de “Laços de família”, o cenário é o Jardim Botânico. Lá, ela tinha esse contato com a natureza, que o Leme também proporcionava, com a praia, o mar, o verde, os pássaros — afirma a professora e biógrafa Teresa Montero, autora de “Eu sou uma pergunta — Uma biografia de Clarice Lispector”, que organiza o passeio “Rio de Clarice” desde 2008.

No bairro, uma extensão de Copacabana, a escritora de “A hora da estrela” viveu em dois endereços: Rua General Ribeiro Costa 2 e Rua Gustavo Sampaio 88, onde, em 1966, ocorreu um incêndio que quase lhe tirou a vida.

— O Leme daquela época era uma espécie de paraíso, meio que fora da cidade. E é um bairro muito pequeno. Você pode percorrê-lo em 40 minutos. É um lugar à parte. Na época dela, quando era mais bucólico, não tinha a violência de hoje — compara Teresa, que se mudou para a região há cerca de três anos.

Perto da estátua de Clarice , no Caminho dos Pescadores, fica um local bastante frequentado pela escritora, a Praça Almirante Júlio de Noronha, aonde a escritora levava seu cão Ulisses (também eternizado em bronze) para passear.

— Há pouquíssimos relatos da Clarice no dia a dia do bairro. Mas há relatos dela ser vista na feira. Outro lugar que ela sempre ia era às bancas de jornal. E ela frequentava a praça com o Ulisses, no fim da tarde. Observava as pessoas e depois ia para casa — conta Teresa.

BANCA E ASSINATURA PERDIDA

Numa das três bancas que frequentava no Leme, na esquina da Aurelino Leal com a Gustavo Sampaio, em frente ao hotel Golden Tulip (antigo Luxor Continental, onde se hospedava para revisar seus livros), há um dos poucos registros fotográficos de Clarice pelas ruas do bairro.

— Além disso, um lugar que era sua segunda casa era o restaurante La Fiorentina (ela se sentava no fundo do salão, à esquerda), que hoje tem duas fotos dela na parede. Infelizmente, a assinatura da Clarice numa das pilastras se perdeu num incêndio em 1987 — diz Teresa, que lança no fim do ano o livro “O Rio de Clarice”, um roteiro pelos caminhos da cidade da escritora, baseado em sua pesquisa e nos quase dez anos do passeio homônimo que organiza, pela Autêntica.

Carlos Drummond de Andrade

No curta “O fazendeiro do ar” (disponível na internet), de Fernando Sabino e David Neves, o mineiro Carlos Drummond de Andrade pode ser visto na pedra do Arpoador, caminhando por Copacabana e tomando café num boteco. Em off, o escritor declama trecho do poema “Prece de um mineiro no Rio”: “não me fujas no Rio de Janeiro / como a nuvem se afasta e a ave se alonga / mas abre um portulano ante meus olhos / que a teu profundo mar conduza, Minas, / Minas além do som, Minas Gerais”.

— Ele se apaixonou muito pelo Rio. O tanto que ele escreveu sobre o Rio, de como ele gostava da vida e das mazelas cariocas. Ele se carioquizou totalmente, à sua maneira, é claro. “Prece de um mineiro no Rio” mostra que ele está precisando um pouco de Minas Gerais, mas não tanto — analisa o jornalista e escritor conterrâneo Humberto Werneck, que prepara uma biografia de Drummond para a Companhia das Letras, prevista para o ano que vem.

Mineiro de Itabira, Drummond chegou ao Rio em 1934 para trabalhar no Ministério da Educação, ao lado do amigo Gustavo Capanema. Ainda em “O fazendeiro do ar”, o escritor confessa que veio para o Rio “com ideias de eficiência, energia, disciplina, de ordem, que, diante da moleza do temperamento carioca e do clima, foram se dissipando”.

— Ele gostava da vida carioca, de ver aquelas mulheres bonitas todo dia. A relação dele com o Rio é amorosa. Outro dia, no entanto, conversei com o Rogério Reis, fotógrafo que fez a imagem que inspirou sua estátua. Segundo ele, o Drummond confessou que quase nunca ia à praia — admite Werneck.

Situada no calçadão de Copacabana, na altura do Posto 6, a estátua de Drummond, tímido e reservado por natureza, sofre com duas mazelas: o roubo constante de seu par de óculos e um número sem fim de turistas que param para tirar uma selfie com o autor de “A rosa do povo”.

— Um dos lugares dele é o Edifício Rex, na Álvaro Alvim, na Cinelândia, onde funcionava o Ministério da Educação. Ali, nos anos 1930, ele e ninguém menos que Sérgio Buarque de Holanda discutiram por causa de uma mulher. Depois de separados pelos colegas, Sérgio bradava: “poetinha de merda, seu poetinha de merda!” — gargalha Werneck. — Ele também frequentava a Livraria Da Vinci e o Restaurante e Pizzaria Americana — diz.

O Rio dos Escritores: Clarice Lispector, Drummond e Nelson Rodrigues

  • O poeta é pop: turistas batem foto ao lado da estátua de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, na altura do Posto 6. O par de óculos do mineiro, infelizmente, já foi roubado algumas vezes. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Os quatro cantos da esquina da Rainha Elizabeth com Conselheiro Lafaiete (onde Drummon viveu) têm versos do poeta encrustados nas pedras portuguesas. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • A centenária Casa Cavé, no Centro, foi frequentada tanto por João do Rio quanto por Drummond, que comia torradas Petrópolis com café. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • A primeira peça de Nelson Rodrigues, "A mulher sem pecado", estreou no Teatro Carlos Gomes, em dezembro de 1942. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Contudo, a consagração do "Anjo pornográfico" viria apenas um ano depois, no Teatro Municipal, com "Vestido de noiva", considerada por muitos a obra-prima de Nelson. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Local onde ficava a primeira casa de Nelson no Rio, no número 135 da Rua Alegre (atual Almirante João Cândido Brasil), na Aldeia Campista, entre o Maracanã e a Tijuca. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Aposentado lê o jornal na Praça Saens Peña: “Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da Praça Saens Peña", afirmava Nelson Rodrigues. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Segundo o biógrafo Ruy Castro, Nelson sempre tomava um cafezinho em botecos perto das redações onde trabalhou. Na foto, o Bar Varnhagen, na Tijuca. Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

  • Clarice Lispector foi eternizada ao lado de seu cachorro, Ulisses, no Caminho dos Pescadores, no Leme, bairro onde viveu por 18 anos. Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

  • Clarice era habituée do restaurante La Fiorentina, no Leme, aonde ia com amigas como Olga Borelli e Nélida Piñón. No alto, à esquerda, uma foto dela ao lado dos filhos. Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

  • A professora e biógrafa Teresa Montero exibe um registro de Clarice em frente a uma das três bancas do bairro que a escritora frequentava, na esquina da Aurelino Leal com a Gustavo Sampaio. Foto: Agência O Globo

Também no Centro, Drummond trabalhou durante anos no Edifício Capanema, até se aposentar. Outro local muito visitado pelo poeta era a centenária Casa Cavé, fundada em 1860.

— Ele era muito educado e humilde. Gostava de torradas Petrópolis com café — diz o garçom Waldir Ramos, há 39 anos na casa.

'SABADOYLE'

Em Ipanema, Werneck lembra de um causo curioso sobre um dos cantinhos de Drummond no Rio:

— O “Sabadoyle” (encontro de intelectuais organizado por Plínio Doyle) foi basicamente criado para acobertar um relacionamento extraconjugal do Drummond, já que a moça também morava na Rua Barão de Jaguaripe

Dos quatro endereços de Drummond na cidade, todos em Copacabana, um deles, na Rua Conselheiro Lafaiete, mantém a sua memória viva, com versos célebres cravados na pedras portuguesas. Em “Elegia carioca”, o poeta escreve: “Nesta cidade vivo há 40 anos / há 40 anos vivo esta cidade / a cidade me vive há 40 anos... / Rio onde viver é uma promissória sempre renovada... / um Rio amantiamado há 40 anos”.