Economia

Trabalho voluntário ou exploratório: os limites do turismo colaborativo

Trabalho voluntário ou exploratório: os limites do turismo colaborativo

Alternativa para viajantes econômicos abre espaço para hotéis e até pessoas comuns explorarem mão de obra de turistas

ANAÍS MOTTA, COM EDIÇÃO DE LIUCA YONAHA
29/08/2017 - 09h00 - Atualizado 29/08/2017 15h34
Turismo colaborativo: determinar as atividades que poderiam ou não ser adotadas nesse âmbito é apenas o primeiro passo para evitar que turistas sejam explorados (Foto: Getty Images)

Viajar sem pagar por hospedagem ou alimentação e, em troca, se oferecer para cozinhar, limpar e até cuidar da recepção de um hotel parece uma ótima ideia. Ótima – mas às vezes ilegal. A prática do turismo colaborativo, ainda não regulamentada no Brasil, acabou abrindo espaço para pessoas comuns e estabelecimentos como hotéis, hostels e pousadas explorarem mão de obra de turistas brasileiros e estrangeiros que buscam formas de economizar em suas viagens.

Na falta de uma legislação específica sobre a modalidade, a análise de cada caso é feita de acordo com os princípios da lei em geral. Segundo Boriska Ferreira Rocha, consultora da área trabalhista da Lobo & de Rizzo Advogados, se uma relação de turismo colaborativo se assemelhar a um vínculo de emprego, valem as leis trabalhistas. “A CLT é muito clara. Se um estabelecimento contrata mão de obra em troca de hospedagem e alimentação, está fazendo algo ilegal”, diz.

>> O Brasil à margem da revolução das cidades

O problema, porém, é que nem a população nem os órgãos públicos brasileiros parecem saber o que está ou não de acordo com a lei. Esto texto publicado no site oficial do Ministério do Turismo, por exemplo, fala sobre o caso de um chef de cozinha que deixou a casa onde mora, no interior de São Paulo, para passar três meses em um hostel de Florianópólis. O turista em questão trabalhou na cozinha do local e, em troca, não pagou pelas diárias.

Em nota publicada em 2015, o MTur incentiva o turismo colaborativo, mas toma como exemplo uma prática ilegal: a não-remuneração de um chef de cozinha em um hostel (Foto: Reprodução)

“Isso não é trabalho voluntário. Essa prestação de serviços se encaixa perfeitamente na definição de empregado dada pela CLT”, afirma Boriska. “Existem limites para o pagamento em utilidade [moradia e refeições, por exemplo]. Segundo a lei, parte do salário deve, necessariamente, ser paga em dinheiro.”

Determinar as atividades que poderiam ou não ser adotadas no âmbito do turismo colaborativo é apenas o primeiro passo para evitar que turistas sejam explorados. Para Felipe Bufrem Fernandes, coordenador da área trabalhista da Feijó Lopes Advogados, também falta espaço para o debate público: “A economia compartilhada e o turismo colaborativo são parte da realidade mundial. Essas modalidades deveriam ser mais discutidas com a população e devidamente regulamentadas pelos órgãos responsáveis”.

A reportagem entrou em contato com o Ministério do Turismo, que afirmou estar “realizando rodadas de conversa com representantes da economia compartilhada” para “trabalhar em conjunto numa proposta de regulamentação” do turismo colaborativo. A assessoria, porém, não comentou sobre a nota publicada em seu site, que incentiva uma prática considerada ilegal.

As ofertas nas internet

Hoje, sites especializados, como o Workaway e o Worldpackers, servem de canal para turistas brasileiros encontrarem vagas de trabalho temporário. Dois tipos de anúncios aparecem com mais frequência: aqueles com vagas para trabalhar em hotéis, hostels e pousadas e para cumprir serviços domésticos, como limpar a casa, cuidar de crianças e cozinhar. “Nesses sites, existem situações reais de economia compartilhada, de turismo colaborativo. Mas trabalhar de graça para um hotel, por exemplo, não se encaixa nessa definição”, diz Boriska.

Anúncio do Workaway: novo hostel em São Paulo (SP) procura alguém para ajudar na manutenção do estabelecimento e na recepção dos turistas (Foto: Reprodução)

Além disso, esses sites acabam lucrando com uma prática que é ilegal. Para Maurício Ferreira Brito, vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), é como o antigo “gato”, que alicia trabalhadores mediante falsas promessas de salários vantajosos e bom emprego. “Mas é um ‘gato’ mais moderno, mais atrativo”, compara. “As duas partes estão erradas: a pessoa que anuncia e faz esse tipo de contratação e os sites que veiculam essas vagas e acabam lucrando com essa intermediação.”

O problema se agrava quando o turista que aceita esse tipo de trabalho exploratório vem de fora do Brasil, já que, segundo a Constituição, todos os estrangeiros devem ter um visto específico para trabalhar por aqui. “Nessa situação, os estrangeiros acabam ficando mais vulneráveis”, diz Maurício. “Às vezes, o turista estrangeiro não sabe falar português e nem sequer conhece a localidade em que está sendo ofertado aquele trabalho. A lei e o MPT podem protegê-lo da mesma forma, mas ele corre muito mais riscos que um brasileiro.”

O risco maior: trabalho análogo à escravidão

Quando feito de forma ilegal, o turismo colaborativo também pode abrir precedente para outra prática proibida pela legislação: o trabalho análogo à escravidão. Isso porque uma pessoa de menos recursos, mesmo não sendo turista, pode acabar recorrendo a esses serviços por falta de opções. “Um desempregado, por exemplo, sem ter onde morar, pode responder a um anúncio desses”, diz Giovanna Sella Freire, advogada da área trabalhista da Lobo & de Rizzo Advogados. “Essa pessoa não está atrás de um intercâmbio cultural. O trabalho exploratório acaba sendo a alternativa que ela encontra para não ir morar na rua.”

O MPT observa o Artigo 149 do Código Penal para classificar ou não um trabalho como análogo à escravidão. São três hipóteses: quando há cerceio de liberdade; quando houver um ambiente de trabalho degradante ou inadequado; quando há jornada exaustiva. “Se o ministério souber de um trabalhador que está na casa de alguém em troca de moradia, sendo explorado e ganhando mal, essa prática será investigada e pode ser, sim, considerada trabalho análogo à escravidão”, afirma Maurício.

>> "Turismofobia" avança em cidades europeias

>> A mulher que libertou mais de 2 mil escravos em pleno século XXI

Ainda segundo o vice-coordenador, a servidão por dívida também caracteriza o trabalho análogo à escravidão. “É como acontecia centenas de anos atrás e ainda acontece atualmente. O empregado contrai uma dívida para começar o trabalho e não consegue sair daquela casa nunca mais, não consegue pagar o que, em tese, deve a seu patrão. Isso é escravidão”, diz.

Recentemente, um anúncio com a mesma roupagem de economia compartilhada do turismo colaborativo teve grande repercussão na internet. Sua idealizadora, a designer Patrícia Gomes Benfica, de 41 anos, oferecia moradia em um “apartamento descolado” em São Paulo. Em troca, a pessoa deveria ajudar nos cuidados de seu filho de 7 anos. A “babá” precisaria gostar de crianças, saber cozinhar e arrumar a casa, além de dar almoço para a criança e colocá-la no transporte escolar.

Em anúncio, a designer Patrícia Gomes Benfica ofereceu moradia em um "apartamento descolado” em São Paulo. Em troca, a pessoa deveria ajudar nos cuidados de seu filho (Foto: Reprodução)

Em 24 de julho deste ano, a designer assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT se comprometendo a não empregar trabalhadores domésticos sem formalizar contratos de trabalho. “Para você empregar alguém, existem requisitos mínimos na legislação. Você deve oficializar a duração desse vínculo, os salários, registrar essa pessoa em carteira”, diz Maurício. “Se você não estabelece esses pontos com seu empregado, está infringindo a lei. É por isso que esse tipo de oferta de emprego [como da Patrícia] é ilegal.”

Como identificar o que é permitido

O turismo colaborativo pressupõe uma troca voluntária de serviços e experiências que sejam benéficos para os interessados. Se um anúncio busca pessoas para um trabalho específico e, de certo modo, subordinado, esse serviço não se configura como voluntário. “Em um hostel, por exemplo, a pessoa tem de cumprir uma carga horária específica, com horários predeterminados. Na casa de alguém, terá de seguir ordens do dono para manutenção e limpeza”, diz Giovanna. “Nesse caso, não se pode remunerar o trabalhador apenas com moradia e, eventualmente, refeições.”

Além disso, pouco importa se o trabalho em questão é feito presencialmente ou não. Isso porque, segundo o Artigo 6º da CLT, “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado à distância”. Monitorar as redes sociais de um hotel, como é sugerido na nota publicada pelo Ministério do Turismo, é uma tarefa que não precisaria ser feita presencialmente, mas ainda assim se configura como trabalho e deve ser remunerada como diz a lei.

Nota do MTur: mesmo que uma tarefa como monitorar redes sociais possa ser feito à distância, ela também é considerada um trabalho pela CLT  (Foto: Reprodução)

O trabalho voluntário em troca de hospedagem, alimentação e outras utilidades é permitido no Brasil e já é muito comum na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. De acordo com a Lei do Voluntariado (nº 9.608 de 18 de fevereiro de 1998), o serviço não remunerado só é considerado voluntário se prestado a “entidade pública de qualquer natureza ou à instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa”.

Isso ajuda a explicar por que o trabalho não remunerado em hotéis, hostels e pousadas não se configura como voluntário. “Não existe trabalho voluntário de recepcionista ou de babá”, diz Boriska. “No turismo colaborativo, as duas partes dividem custos e trocam experiências entre elas. Se a única experiência garantida é trabalhar de graça para uma empresa que tem fins lucrativos, como é o caso dos hostels, isso não é trabalho voluntário, é apenas exploração.”

>> As 100 melhores ONGs do Brasil

No site do Worldpackers, por exemplo, há muitos anúncios de serviços não remunerados que realmente são trabalhos voluntários e podem ser uma alternativa para quem quer economizar em suas viagens. As atividades normalmente envolvem cuidar de animais em zoológicos, ajudar crianças em orfanatos e prestar auxílio a ONGs de diversas áreas de atuação – tudo isso permitido pela lei.

Anúncio do Worldpackers: vaga para voluntário em um orfanato no Nepal, na Ásia, é um exemplo de serviço não-remunerado permitido pela legislação brasileiro (Foto: Reprodução)







especiais