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História viva dos morros do Rio

Documentário retrata remoção de favelas da Zona Sul nos anos 60 e 70
Documentário retrata remoção de favelas na Zona Sul Foto: Reprodução / Agência O Globo
Documentário retrata remoção de favelas na Zona Sul Foto: Reprodução / Agência O Globo

RIO - “Felizmente, a favela carioca é algo que tende a desaparecer de nossa realidade.” A afirmação, trecho de um comercial da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (Chisan, órgão federal que existiu de 1968 a 1973), resume a ação governamental direcionada às favelas do Rio de Janeiro nos anos 60 e 70. O processo, que atingiu principalmente comunidades da Zona Sul, é o tema do recém-lançado documentário “Remoção”, dirigido e roteirizado por Anderson Quack e Luiz Antonio Pilar.

As lembranças dos entrevistados passam pelo “X” vermelho usado para marcar uma casa que seria demolida no Morro do Pasmado, em Botafogo, e chegam à distribuição aleatória das chaves dos imóveis para os futuros moradores de conjuntos habitacionais como Vila Aliança e Vila Kennedy, ambos em Bangu.

— O autoritarismo foi forte. As lideranças da Ilha das Dragas (na Lagoa) foram presas. Na Praia do Pinto (no Leblon) a remoção começou em março e houve um grande incêndio em maio (as causas nunca foram esclarecidas) — exemplifica o historiador Mario Brum. — Os moradores começaram a perceber que resistir era pior.

O contexto político, com o país atravessando o período da ditadura militar (1964-1985), e o discurso oficial sobre as possíveis melhorias sociais para os removidos também dificultaram a resistência.

— As remoções eram usadas pelo Estado como propaganda. O programa do governo apresentava o tema como uma questão de remodelamento urbano. A área da Leopoldina e a Zona Oeste seriam fabris, com a necessidade de trabalhadores próximos. Já a Zona Sul seria uma área residencial — explica Brum.

Para Anderson Quack, secretário-geral da Central Única das Favelas (Cufa), a vontade de contar a história das remoções nasceu de uma experiência pessoal. A mãe, oriunda do Parque Proletário da Gávea, e o pai, vindo da favela Macedo Sobrinho, no Humaitá, foram morar na Cidade de Deus, em Jacarepaguá.

— Comecei a frequentar a Zona Sul no início da minha adolescência e passei a me questionar: por que meus pais saíram daqui? — lembra.

A ideia inicial de escrever um livro sobre o assunto se transformou a partir das conversas com o diretor e produtor Luiz Antonio Pilar. Em 2010, gravaram a primeira entrevista, com Sandra Cavalcanti, secretária de Serviços Sociais do Estado da Guanabara durante o governo de Carlos Lacerda (1961-1965).

— Ela nos recebeu com um carinho imenso, mas logo que eu bati a claquete e falei “projeto remoção”, ela retrucou: “já não gosto desta palavra” — conta Quack.

Ao longo das filmagens, os idealizadores foram percebendo a necessidade de os entrevistados desabafarem sobre uma história que estava engasgada há anos.

— Nós abrimos a câmera mesmo. Teve uma senhora que fez questão de dar entrevista na piscina do prédio onde ela mora, para mostrar que tinha superado as adversidades. Outra entrevistada agradeceu pela oportunidade de falar sobre o tema abertamente — destaca Pilar.

O filme foi o vencedor do júri popular da mostra competitiva do Festival Internacional de Cinema de Arquivo (Recine), mas ainda não há previsão de entrada no circuito comercial. Já houve exibições na Cidade Alta, em Cordovil, e no Morro da Providência, na Zona Portuária. Além de levar o documentário a outras comunidades, Quack e Pilar pretendem organizar sessões em escolas e universidades.

Mudança para áreas distantes

O processo de remoção dos anos 60 e 70 atingiu áreas como a Favela da Catacumba e a Ilha das Dragas, na Lagoa; Morro do Pasmado, em Botafogo; Macedo Sobrinho, no Humaitá; Praia do Pinto, no Leblon; e Parque Proletário da Gávea. A Cruzada São Sebastião, projeto idealizado por dom Hélder Câmara e construído em 1955 no Leblon, foi um dos locais que receberam os moradores. No entanto, na maior parte dos casos, eles foram retirados da Zona Sul para as zonas Norte e Oeste, onde passaram a morar em conjuntos habitacionais criados para recebê-los: Cidade de Deus, em Jacarepaguá; Dom Jaime Câmara, em Padre Miguel; Cidade Alta, em Cordovil; e Vila Kennedy e Vila Aliança, ambas em Bangu.

— A vida ficou mais difícil. Trabalhava em Copacabana e, quando cheguei na Cidade Alta, nem sabia como sair de Cordovil para chegar ao trabalho — lembra a aposentada Maria Margarida Nonato, removida da Praia do Pinto. — No início, a Cidade Alta não tinha água, luz, asfalto, nenhum armazém. Foi uma surpresa desagradabilíssima.

Acostumados a trabalhar perto de onde moravam, os moradores sofreram com a distância e, especialmente, com a deficiência de transporte público.

— Meu questionamento é: por que não reassentaram as pessoas nos seus lugares de origem? — reforça o diretor e roteirista Anderson Quack.

As justificativas usadas pelo poder público para defender as remoções também são alvo de questionamento. Segundo a socióloga Denise Nonato, o discurso nem sempre coincidia com a prática.

— O governo dizia que a área da favela (Praia do Pinto) não era urbanizável. Mas como não poderia ser urbanizada se logo depois foi vendida? (deu origem ao condomínio Selva de Pedra). Havia um interesse imobiliário muito forte ali, e não queriam que surgisse uma nova Cruzada São Sebastião — afirma ela, que saiu da Praia do Pinto para a Cidade Alta.

O assunto, mesmo sem a força do período retratado pelo filme, nunca deixou de fazer parte do cotidiano carioca. Quack se recorda das remoções na Cidade de Deus, nos anos 90, para a construção da Linha Amarela, e de uma reação que o surpreendeu:

— Minha mãe queria se mudar por causa da violência.

Recentemente, houve remoções para a construção do Parque Madureira e a abertura da Transoeste e Transcarioca. No momento, está em curso o processo de retirada dos moradores da Vila Autódromo, em Jacarepaguá.

— Continuo não concordando com a forma como são feitas as remoções, apesar de achar algumas inevitáveis — diz Quack.

— Hoje há uma possibilidade de o filme servir como incentivo para que lideranças continuem lutando para ficar onde estão — espera o diretor e roteirista Luiz Antonio Pilar.