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Patricio Pron lança romance autobiográfico que se pretende 'coletivo'

Argentino veio ao Brasil para apresentar 'O espírito de meus pais continua a subir na chuva'
O escritor argentino Patricio Pron Foto: Divulgação
O escritor argentino Patricio Pron Foto: Divulgação

SÃO PAULO — Após desembarcar em São Paulo, há pouco mais de dez dias, o escritor argentino Patricio Pron passeou pelas ruas da cidade conduzido por um taxista que trocava a estação de rádio toda vez que a prisão do ex-presidente Lula tomava o noticiário.

— Não sei se ele estava decepcionado com a prisão de Lula ou se sentia uma alegria excessiva que não queria demonstrar diante de seu passageiro, mas, a cada 100 metros, ele mudava a estação, porque só se falava de Lula na rádio —, disse Pron ao GLOBO.

Quando o taxista cruzou a esquina das avenidas Ipiranga e São João, no centro da cidade, Pron se comoveu.

“Crer que uma autobiografia não possa ser coletiva é resultado de uma visão muito individualista do sujeito e de seus vínculos com o coletivo. Os outros somos nós. Nós somos o outro dos outros. ”

Patricio Pron
Escritor

O argentino tem 42 anos e vive em Madri, na Espanha. Tinha 15 anos quando veio ao Brasil pela última vez, passar as férias em Santa Catarina com a família. Pron compreende português e se esmera no portunhol. E se surpreendeu ao recordar algumas expressões do português brasileiro, como a simpática “papo”, que ele não se lembrava se era o mesmo que “conversa” nem se era formal ou informal.

Pron veio ao Brasil lançar "O espírito de meus pais continua a subir na chuva",  romance autobiográfico no qual uma investigação sobre os passatempos de um pai moribundo se transforma numa reflexão sobre os traumas da ditadura civil-militar argentina (1976-1983).

Pron é um dos expoentes de uma nova geração de escritores latino-americanos — Alejandro Zambra (chileno), Mariana Enriquez (argentina), Julián Fuks (brasileiro) — que embaralha as convenções literárias e borra as fronteiras entre ficção e realidade para interrogar o passado autoritário da região.

Na entrevista, Pron refletiu sobre as relações entre a literatura e a política, sua relação com seu país de origem e as rivalidades que animam brasileiros e argentinos.

Em “O espírito de meus pais...”, o narrador recorda o projeto político da geração de seus pais, que combateu a ditadura argentina. Nos últimos anos, tem se encerrado, na América Latina, um ciclo de governos à esquerda, liderados por representantes daquela geração. Esse projeto político fracassou?
Acho que não. Embora representantes daquele projeto político tenham exercido cargos de responsabilidade nas sociedades latino-americanas, houve também um regresso de uma concepção, que tenho por inimiga, que enxerga o governo como uma empresa que deve alocar recursos. Mas o espírito de intervenção daquela geração não caducou. Sociedades tão desiguais como as nossas exigem uma intervenção política talvez similar à intervenção sonhada pela geração dos meus pais. É necessário rever essas ideias, apreciá-las criticamente para que, afastado o horror do passado, possamos recuperar o espírito de luta contra as desigualdades daquela geração, que possivelmente foi a mais generosa que a América Latina já teve. É um projeto que não se concluiu e pode ser retomado por uma nova geração de ativistas.

“O espírito de meus pais...” combina autoficção com uma revisão do passado recente argentino. Como um romance autobiográfico também pode refletir sobre os traumas de uma sociedade?
Crer que uma autobiografia não possa ser coletiva é resultado de uma visão muito individualista do sujeito e de seus vínculos com o coletivo. Não é mérito do meu livro conseguir apelar ao coletivo sendo também muito fiel aos fatos (ou ao que eu me recordo deles). Na verdade, é a maneira como pensamos nosso lugar na sociedade, e a relação dos livros com a sociedade, que produz a crença errônea de que não se pode escrever sobre si mesmo e falar dos outros ao mesmo tempo. Os outros somos nós. Nós somos o outro dos outros. Por mais individual que seja, um documento de época é sempre um documento coletivo. Quando escrevi esse livro, pensava que ele só interessaria a mim, que estava apenas botando uns pontos finais numa história pessoal. Pensava que estava escrevendo apenas sobre mim, meus pais e meus irmãos. Mas, às vezes, nós, escritores, somos como para-raios das sociedades em que vivemos, percebemos correntes elétricas que os outros não percebem. Talvez seja o único mérito que temos.

A segunda parte de “O espírito de meus pais...” começa com uma epígrafe de César Aira: “Deveríamos pensar em uma atitude ou em um estilo que possa transformar o que for escrito em um documento”. Que tipo de documento você e outros autores latino-americanos que escavam os traumas da ditadura (Mariana Enriquez, Alejandro Zambra, Julián Fuks) estão produzindo?

“A literatura latino-americana, especialmente a literatura mais política, sempre aspirou ser uma literatura que desse conta de explicar sociedades tão complexas como a colombiana, a mexicana, a argentina, a brasileira.”

Patricio Pron
Escritor

Talvez o que me una a esses escritores que você mencionou seja uma vontade de intervenção que inexistia na geração literária que nos precedeu, a geração de escritores que apareceu na América Latina nos anos 1990 e que, em concordância com aqueles tempos individualistas, consideravam que a literatura tinha uma função lúdica. A minha geração trouxe a possibilidade de pensar a literatura para além da dicotomia entre a literatura como entretenimento, que vigorou nos anos 1990, e a literatura como expressão de um compromisso político, defendida pela geração dos anos 1960 e 1970. Os escritores da minha geração não prescindem os efeitos estéticos para obter efeitos políticos. Nós pensamos a estética como parte da política. Por isso, um livro-documento como “O espírito de meus pais” não pode ser um romance convencional. Para produzir efeitos políticos, ele precisa produzir efeitos estéticos, afastando-se dos lugares-comuns. Nós também vemos uma continuidade entre os períodos ditatoriais e a atualidade, em certas formas de comportamento, nas relações entre os sujeitos. Talvez essa perda de ingenuidade seja a nossa maior contribuição para uma literatura que tem larga tradução política.

A epígrafe de César Aira também fala de uma “atitude” e de um “estilo”.
A literatura latino-americana, especialmente a literatura mais política, sempre aspirou ser uma literatura que desse conta de explicar sociedades tão complexas como a colombiana, a mexicana, a argentina, a brasileira. Todas as tradições nacionais têm narrativas que passam em revista a história do país desde a conquista ibérica para explicar por que nada aqui funciona. Muitos desses livros foram escritos durante o “boom" latino-americano. A minha geração não aspira a essa totalidade. Quem cresceu na América Latina nos anos 1970 e 1980 tem uma relação de muito ceticismo com discursos totalizantes, o que indica não apenas uma estética comum, mas também uma profunda desconfiança de discursos que pretendem ser a verdade. Não há mais lugar para escritores que, de seus apartamentos luxuosos em Madri, decidem como devem votar os brasileiros ou qual deve ser a opinião dos colombianos sobre o acordo de paz. Não precisamos mais do escritor que, do alto de um púlpito, joga migalhas de verdade a um público faminto. A função do escritor é animar o debate, jamais se arrogar uma superioridade moral. E isso não é modéstia — os escritores da minha geração não são muito modestos, mas reconhecemos nossas limitações, que não temos controle sobre nossos próprios livros. Devemos empoderar os leitores, libertá-los.

E como o manejo da forma literária pode ajudar na libertação do leitor?

“Os autores, não apenas escritores, que me interessam são os que se fizeram estrangeiros dentro se sua própria língua ou disciplina, como Miles Davis, Frank Zappa, Bob Dylan, Pablo Picasso.”

Patricia Pron
Escritor

Devemos frustrar as expectativas do leitor, escrever livros que não correspondam ao que se espera de um romance. Autores que eu admiro, como Mario Levrero, César Aira e João Gilberto Noll, provaram ser possível produzir uma literatura que não corresponde a etiquetas e definições pré-determinadas que orientam como muita gente se relaciona com a literatura. A minha geração aproveitou para produzir uma literatura que vai contra a vontade e os hábitos do leitor. É uma literatura que se caracteriza por um certo esvaziamento. Nós esvaziamos nossos textos para que o leitor possa ocupá-los. No meu caso, há uma vontade deliberada de embaralhar a forma do livro. Por exemplo, os meus livros vêm acompanhados de playlists e manuscritos; há um diálogo com as artes plásticas, a construção de um discurso estético que vá além da literatura e dialogue com a arte contemporânea.

O narrador de “O espírito de meus pais...” diz que só recentemente descobriu que é possível um escritor ser argentino e ainda estar vivo. Por que é tão assombroso que haja escritores argentinos vivos?
Quando eu era criança, a biblioteca dos meus pais não era muito diferente das bibliotecas de outros revolucionários argentinos do período. Havia muito da tradição literária argentina e latino-americana, mas nada contemporâneo. Minha mãe recitava “Martín Fierro”, o poema nacional argentino, para mim. E eu o achava muito bonito. Aquilo era o ápice da literatura e da língua argentinas. A biblioteca dos meus pais era constituída de autores mortos, ainda que mortos recentes, como Rodolfo Walsh (1927-1977). Foi quase uma iluminação descobrir que havia escritores argentinos vivos. Mas foi também uma advertência, porque o escritor argentino vivo naquele momento era Ernesto Sabato (1911-2011), um escritor muito controverso, cujos últimos gestos políticos o honraram, mas que teve uma relação complexa com a política. A meu ver, ele sempre esteve do lado errado da história. Descobrir que havia escritores argentinos vivos foi uma licença para escrever, mas também uma advertência sobre os riscos da intervenção.

“Nós, argentinos, temos uma relação complexa com o Brasil. Talvez por ignorância, a nossa rivalidade futebolística às vezes se converte numa rivalidade cultural. Isso somado a uma profunda preguiça argentina nos afasta da literatura brasileira”

Patricio Pron
Escritor

Como os escritores argentinos, vivos ou mortos, o influenciaram?
É comum que um escritor tenha afinidades estreitas com um autor que depois ele venha negar. Mas eu nunca quis matar meus pais literários. Alguns deles já estão mortos, como Ricardo Piglia, Rodolfo Walsh e Manuel Puig. Também admiro contemporâneos como Pablo Katchadjian, Maria Moreno e Alan Pauls. Os autores — não apenas escritores — que me interessam são Miles Davis, Frank Zappa, Bob Dylan, Pablo Picasso, artistas que se fizeram estrangeiros dentro de sua língua ou de sua disciplina. E isso me interessa particularmente.

O narrador de “O espírito de meus pais...” tem uma relação complexa com a Argentina, um país para o qual ele não desejava voltar. Como é sua relação com a Argentina?

Capa do livro "O espírito do smeus pais continua a subir na chuva", de Patricio pron Foto: Reprodução
Capa do livro "O espírito do smeus pais continua a subir na chuva", de Patricio pron Foto: Reprodução

Moro há quase 20 anos fora. Minha relação com a Argentina foi muito conflituosa num momento. Eu não fui embora por razões políticas ou econômicas. Não sou um exilado. Eu posso voltar para Argentina quando quiser. As coisas mais interessantes da Argentina eu as tenho onde quer que eu vá, porque são parte da minha própria educação, como também são acessíveis de uma forma ou de outra: os livros, as canções, os filmes. Eu quero estar presente na Argentina por meio dos meus livros, porque, se eles forem bons, serão melhores do que eu. Quero dialogar com a Argentina por meio dos meus livros.

O seu romance guarda muitas semelhanças como “A resistência”, do brasileiro Julián Fuks, no qual uma investigação familiar também se transforma numa reflexão sobre as ditaduras brasileira e argentina. Qual a sua familiaridade com a literatura brasileira?
É menor do que eu gostaria. Eu li os escritores brasileiros de quem mais se fala fora do Brasil. Você sabe, nós, argentinos, temos uma relação complexa com o Brasil. Talvez por ignorância, a nossa rivalidade futebolística às vezes se converte numa rivalidade cultural. Essa rivalidade, somada a uma profunda preguiça argentina, nos afasta da literatura brasileira, talvez por temermos descobrir que os brasileiros também podem ser melhores que nós na literatura, e não só no futebol — ainda que não seja difícil ser melhor que a seleção argentina no momento. Seria um grande golpe no orgulho argentino descobrir que há escritores magníficos no Brasil. Mas a maior parte dos leitores argentinos não se atreve a correr o risco e encontrar escritores brasileiros talentosos e impossíveis de plagiar.

"O espírito de meus pais continua a subir na chuva"

AUTOR: Patricio Pron

TRADUÇÃO: Gustavo Pacheco

EDITORA: Todavia

PÁGINAS: 160

PREÇO: R$ 44,90