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Rio

Antiga residência da família real, Palácio da Quinta da Boa Vista guardava a história do Brasil

Para historiadora Mary Del Priore, aquele era um espaço de memória importante para o país

Bastidores do Museu Nacional: detalhe do banco do Jardim das Princesas
Foto:
Eduardo Naddar
Bastidores do Museu Nacional: detalhe do banco do Jardim das Princesas Foto: Eduardo Naddar

RIO — O incêndio que destruiu o bicentenário Museu Nacional também levou junto um pedaço da memória do Brasil. Antes de ser transformado em instituição de pesquisa, em 1892, o prédio, Paço de São Cristóvão, foi ocupado pela família real, entre 1808 a 1889. Ali aconteceram os famosos beija-mãos, momentos em que o povo tinha a chance de adentrar a pomposa construção e, por alguns instantes, admirar e sentir-se próximo de Dom João, Carlota Joaquina e a família monárquica. Das janelas daquele prédio em estilo neoclássico, Dom Pedro I vigiava os passos da amante, a Marquesa de Santos, escandalosamente acomodada num palacete estrategicamente próximo do endereço real. E foi naquele palácio que Dom Pedro II aprimorou seus estudos e, mais velho, viveu com Tereza Cristina de Bourbon. Para a historiadora Mary Del Priore, a perda do prédio apaga o passado.

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— O legal deste lugares de memória não é só que eles sejam o espaço onde foi assinada nossa Independência, ou o espaço onde os republicanos fizeram a Constituição de 1891. Mas também da pequena história. Ali foi feito o jardim das princesas, onde as irmãs de Dom Pedro II, Dona Januária, Dona Paula e Dona Francisca construíram e decoraram, com pequenas conchas e pedaços de porcelana quebrada, os bancos do jardim. Era da janela desse palácio que Dom Pedro controlava sua amante, a Marquesa de Santos. Que Dom Pedro II tomava sua canja toda noite. Foi ali que a Leopoldina deu à luz a nove filhos, foi ali que ela morreu tragicamente. A tristeza do desparecimento deste espaço de memória não é só a perda da grande história. É a da pequena história do Brasil que também desaparece com a perda do imóvel — diz Del Priore, autora de diversos livros sobre a História do Brasil, entre eles, "A Carne e o Sangue", que conta a vida de Dom Pedro I, Leopoldina e a Marquesa de Santos.

A historiadora Flávia Miguel de Souza, especializada em Patrimônio, relembra que a construção foi cenário de vários casamentos e nascimentos.

—  Dom Pedro II nasceu lá, assim como a Princesa Isabel — diz.

Tombada pelo antigo Sphan em maio de 1938, a Quinta surgiu como chácara do comerciante Elias Antônio Lopes. Até 1759, a área onde se localiza a chamada Quinta da Boa Vista fazia parte de uma enorme fazenda de jesuítica, desapropriada quando os expulsaram os padres jesuítas de Portugal e de todas as suas colônias.

— Aquela região toda era uma grande fazenda jesuíta. Era tão grande que ia do Rio Maracanã até Inhaúma. Era uma fazenda banhada por rios: Comprido, Joana e Maracanã. Ela era um local estratégico de passagem de todos os viajantes que iam para Minas Gerais, um lugar importante, que foi desapropriado em 1759, quando os jesuítas foram expulsos. As terras foram leiloadas para 200 proprietários. Entre eles, o comerciante português chamado Elias Antônio Lopes, que tinha uma casa de venda na Rua Direita. Ele primeiro cria vacas, depois vai fazer sua Quinta. Eram dois pavimentos, todo cercado de varandas. A casa não tinha luxo, mas tinha uma vista maravilhosa para a Baía de Guanabara, a Serra dos Órgãos e o Maciço da Tijuca — conta Mary Del Priore.

Com dois pavimentos e uma planta retangular, a residência tinha varanda em três lados. Apesar de não ser luxuosa, era considerada a melhor propriedade na época.

— Quando Dom João VI chega como regente e começa a confiscar propriedades carioca, sendo a casa de Elias Lopes a mais bela, a maior, e sendo ele um espertalhão, antes de ver sua casa confiscada, ele dá de presente, no dia 1º de janeiro de 1809, a sua casa para o príncipe regente. Ele não faz isso de graça, sabe que será aquinhoado com uma série de vantagens. Transforma em monte fidalgo da Casa Real, passa a alcade-mor e ainda leva um dinheiro — explica a historiadora.

Assim que recebe a casa, considerada muito simples, Dom João começa as primeiras reformas. Amplia os blocos e, nos fundos, manda construir senzalas, cocheiras e estrebarias. Segundo Flávia, nesta época a edificação ganha uma fachada inspirada no Palácio da Ajuda, em Lisboa, residência da família real portuguesa.

— O Dom João VI quer que a casa tenha pelo menos alguns atributos em sua função de ser a nova casa do regente. Ele amplia os blocos que existiam. Ele ganha do Duque de Northumberland este portão belíssimo que hoje está na porta do zoológico. Ele vem todo desmontado num navio. Enfim, ele quer uma entrada real de recepção das carruagens que chegavam ao palácio do regente — completa Mary Del Priore.

Outras reformas e ampliações foram feitos pelos moradores.

— No casamento de Dom Pedro com Leopoldina, acontece outra reforma. Ali se instalam os aposentos do casal, que dormia separado. Tivemos ali, o famoso quarto de Dom Pedro e Leopoldina, com um dossel tão grande que cai em cima dos noivos na noite de núpcias, talvez pelo esfogueteamento de Dom Pedro. Depois, já viúvo, quando se casa com Amélia, ele manda construir um chafariz octogonal no palácio, com repuxo visível, que lembra o Palácio de Versailles. Ele manda fazer um bonito lago com repuxo, com vista para aos aposentos imperiais e para a sala de jantar. Dom Pedro II só começa a morar no palácio em 1825, fazer seus estudos, tomar sua canja de galinha, até casa com a Tereza Cristina de Bourbon. Esta princesa italiana traz de sua família, várias peças de Pompeia. Ela traz para o Brasil os afrescos do templo de Isis, junto com uma coleção de vasos etruscos e as famosas ânforas que tinham sido desenterrados em Pompeia — diz Del Priore.

Segundo Flávia Miguel,  a última das três grandes modificações foi a que deixou o prédio com estilo neoclássico.

— A última foi feita por Dom Pedro II e deixou o prédio com as características neoclássicas que se mantiveram até hoje. Nesta época, o edifíco ganhou mais um pavimento, foram colocadas estátuas no telhado. E Dom Pedro II fez uma mudança no paisagismo do palácio, contratando Auguste Glaziou, que abriu a famosa alameda das sapucaias — comenta Flávia, professora da Estácio.

O Palácio nunca teve suntuosidade e luxo.

— A família imperial tinha hábitos muito modestos, especialmente com Dom Pedro II, que era um homem muito republicano, muito simples. Na época de Dom Pedro I, não tinha luxo porque ele era pão duro. Não havia ostentação, causava até a impressão de pobreza: a louça não era formidável, nem o mobiliário. As casas ricas do Rio era infinitamente mais ricas que a casa do imperador — explica Isabel Lustosa.

Residência da família real e imperial no século XIX,  após a proclamação da República o palácio recebeu a plenária da primeira constituinte republicana brasileira, em 1891. Foi transformado em museu em 1892, com a transferência da instituição do Campo de Santana para São Cristóvão. Dos tempos da monarquia, o museu mantinha um rico acervo, com mobiliário e vestimentas. Entre os destaques, a Sala dos Diplomatas e a Sala do Trono de Dom Pedro II.

Na avaliação da historiadora Isabel Lustosa, o período em que a casa foi habitada por Dom Pedro I foi um dos mais recheados de histórias.

— A princesa que mais esteve ligada à história deste palácio foi a Leopoldina. Ela chegou em 1817, foi morar lá. E foi feliz no começo do casamento, depois foi muito infelize e morreu lá, aos 29 anos, em 1826. Acho interessante, do ponto de vista de um espaço, aquilo que o Paço representou na vida de uma mullher. A primeira a de alguma forma a governador o Brasil, mesmo que por poucos dias.