Coluna
Mauro Ventura mventura@oglobo.com.br A coluna é publicada aos domingos na Revista O GLOBO

Duas águas e a conta com Careca do Império

Um dos ‘Pelés do samba’, benemérito do Império Serrano une passado, presente e futuro do carnaval

Careca do Império: "Quero criar uma escola de jovens compositores" - Mauro Ventura / O GLOBO

Ano passado, o sambista Pretinho da Serrinha agradeceu no programa de Fátima Bernardes ao “tio Careca”, por ter chegado onde chegou. Como ele, muitos talentos prestam reverência a um dos maiores passistas da história do carnaval, Arandi Cardoso dos Santos, o Careca, fundador da primeira escola de samba mirim, a Império do Futuro, que desfila no Sambódromo na terça. Um dos “Pelés do samba” e criador da primeira ala coreografada do carnaval, ele é “um pioneiro dentro de uma escola pioneira”, como diz Bernardo Araujo, autor de “O prazer da Serrinha: histórias do Império Serrano”. Aos 70 anos, benemérito do Império, que desfilou anteontem na Série A, ele e a mulher, Célia, se viram para levar desde 1983 a Império do Futuro à Avenida. “Fui agora pegar 18 instrumentos que um cara me prometeu e em vez disso ele me deu R$ 200. Isso não compra nem uma caixa de baquetas”, lamenta, fumando um cigarro atrás do outro. “É que estou nervoso. Não temos patrocinador. Vai dirigir carnaval com 1.200 crianças sem dinheiro...” O enredo é “Rio maravilha, nós gostamos de você”. “Vou levar uma camisa da escola ao prefeito e pedir uma sede. Não podemos nem fazer ensaios e gerar renda.” O enredo do ano que vem já está definido: Olimpíadas.

REVISTA O GLOBO: Como surgiu o apelido “Pelé do samba”? E como foi criar a primeira ala coreografada do carnaval?

CARECA DO IMPÉRIO: Em 1958, Pelé surgiu no futebol. Então eu, Jorginho do Império e Sérgio Jamelão decidimos sambar na Avenida com uma bola imaginária. Sambávamos fazendo embaixadas e faltas, dando balões e fintas, tudo que existia no futebol. Viramos os “Pelés do samba”. Em 1963, decidi envolver mais os componentes no desfile e inventei uma ala coreografada, a Sente o Drama. Tudo que a letra dizia os passistas faziam. O auge foi em 1965, com “Os cinco bailes da história do Rio’’. O figurino era Rei do Baco. A gente ia até barricas que eram levadas no desfile e enchia as taças. Em vez de vinho era Grapette, quase deu dor de barriga em todo mundo. E, quando cantávamos “ao erguer a minha taça”, fazíamos o gesto. A coreografia era toda montada em cima do samba. Foi inédito, antes era cada um por si, fazendo o que dava na cabeça. O público invadiu a avenida e nos ergueu nos braços. Mudou a história coreográfica do carnaval, hoje toda escola tem ala com passo marcado. E tudo começou com este neguinho aqui, que aos 17 anos já estava na capa da revista “O Cruzeiro” com o grupo Ari e seus passistas Bossa Nova, viajando para a Europa.

Quando surgiu a ideia de uma escola de samba mirim?

Em 1979, no Ano Internacional da Criança. Tive a ideia porque criança não pode ser notícia só quando cheira cola, usa crack, mora na rua. Queria algo que desse chance de uma profissão ligada a carnaval, revelasse os sambistas de amanhã, salvasse vidas da criminalidades e mostrasse crianças servindo de exemplo a outras. Eu era vice-presidente e falei ao presidente que queria botar uma escola de samba de crianças à frente do Império: “É inédito. Carnaval é ousadia, se você não ousar não chega a lugar nenhum.” Mas ele ficou com medo. Minha própria escola não acreditou. Só em 1983 consegui fundar.

E qual o balanço que você faz?

Deu tão certo que hoje são 17 escolas de samba mirins. A PUC dá bolsas para os integrantes da nossa escola. Já revelamos nomes como Thiaguinho, que toca com a Mart’nália, o funqueiro Pedrinho Colibri, Rogerinho, repique do Revelação. E vários do Império, como o compositor Marcelo, o diretor de harmonia e compositor Marcão, Átila, que chegou a presidente, Claudinho, que virou primeiro mestre-sala.

Como está o carnaval hoje para você?

Quero criar uma escola de jovens compositores. Faltam talentos. Os sambas não são marcantes. E hoje 95% de quem dirige o carnaval não é sambista. O carro alegórico está ganhando dimensão maior que a bateria, parte mais importante do desfile. Todo mundo só olha para o alto, temos que olhar mais para o chão. Depois que botaram astronauta na avenida achei que o sambista ia sambar lá na lua. Daqui a oito meses ninguém saberá dizer qual enredo foi campeão. Outro dia fui ao Império e o segurança perguntou aonde eu ia. Disse que era benemérito e presidente da escola mirim. Ele respondeu: “Não conheço você, não pode entrar.” Se você não se aproxima do seu passado, o seu presente não vai valer nada, e o seu futuro menos ainda.

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