• Thais Lazzeri
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CF305-INFANCIA-NA-RUA (Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

Priscila* perdeu tudo o que tinha num incêndio, salvou a filha e os documentos (Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

Um carrinho de bebê em tons de rosa se sobressai na pequena multidão masculina em uma rua pouco movimentada da Mooca, bairro da zona leste da cidade de São Paulo. Foi naquela vizinhança que a reportagem da CRESCER saiu a campo para conhecer um pouco da realidade de algumas famílias que enfrentam a dura rotina de criar seus filhos sem um teto seguro para morar. Do dia que começou frio sobraram cobertores com ursos e corações na porta de “casa”, uma barraca de plástico instalada na calçada. Do outro lado da rua, o espaço de convivência para moradores em situação de rua do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto. Era ali que Joana*, 27 anos, amamentava a filha, de 8 meses, que nasceu e cresce nas ruas da maior metrópole do país.

Nem Joana nem a filha existem para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que nunca contabilizou a população em situação de rua do país. A última estimativa nacional é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que projetou 101.854 pessoas a partir de dados do Censo do Sistema Único de Assistência Social de 2015. Segundo o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, esse número seria três vezes maior. O último censo municipal de São Paulo, também de 2015, identificou 2.326 mulheres nas ruas ou em situação de acolhimento, 403 crianças de até 11 anos e 102 adolescentes na mesma condição.

Todos os dias, no fim da tarde, a família de Joana se separa. Acontece, sempre, depois do banho da bebê. Enquanto o companheiro – que, como 70% da população de rua, tem um trabalho informal – organiza os itens coletados para reciclagem com um carrinho de mão, mãe e filha caminham rumo a um abrigo, onde pernoitam.

Os pés da menina mostram o que ela ganhou no abrigo: catapora, mesmo vacinada, como outras três crianças, segundo Joana. “Separar a gente é ruim, mas passar frio na rua é ainda pior. Pela segurança dela, a gente fica longe”, diz, entre um beijo e outro na pequena. Não há abrigos próximos dali para a família toda, e os que existem, ela diz, não têm estrutura para, por exemplo, acomodar os pertences. Por isso, diariamente ela arruma uma mala para dormirem fora de casa – as coisas da filha vão dentro de uma mochila em formato de urso, doada. “Se chegar atrasado não entra, e lá acordam a gente às 5h da manhã.”

A Secretaria Municipal de Assistência  e Desenvolvimento Social da prefeitura de São Paulo informou que tem 148 serviços para a população em situação de rua. Destes, quatro são centros de acolhida para famílias.

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Joana*, 27 anos - Todos os dias, no fim da tarde, a família se distancia. Mãe e filha vão para um abrigo, onde pernoitam, e o marido fica pelas calçadas. No albergue, não aceitam homens (Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

O maior medo: ficar sem os filhos

“Proteger o direito das famílias é proteger o direito da criança”, diz a coordenadora pedagógica Janaína Dantas, da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da Universidade de São Paulo. “Temos poucos centros de acolhida em São Paulo. Se essa família quer ficar junto, não pode ir para um abrigo. Se tem duas mães, não pode. O que a gente está fazendo hoje é separar as pessoas, e isso é um assunto muito sensível.” E continua: “Se essa família quer cuidar [do filho], a gente [poder público] tem muito pouco para oferecer”. Para o coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Leonildo José Monteiro Filho, é preciso mapear essa população. “Essa é uma das nossas grandes lutas. Quando você tem números, consegue criar políticas públicas segmentadas.”

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O maior medo de Rita*, 18, não é a violência nas ruas – naquele dia ela tinha sido enxotada por pedir comida em uma lanchonete – nem tempestades que molham a barraca, localizada embaixo de um viaduto no centro de São Paulo. Ela teme que o filho, de 3 meses, seja vítima da institucionalização. Uma das medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a retirada da criança do convívio familiar em situações de risco. Deveria ser exceção, mas as famílias dizem que não é bem assim. Por isso, por medo, nenhuma das famílias desta reportagem quis identificar quem as ameaçou em relação à guarda dos filhos.

“Quem está na rua não tem resguardo, não come como deveria. Com dois meses meu leite secou. Mas isso não é o pior. Tentaram tirar o meu filho de mim no hospital porque eu não tinha um endereço. Você acha justo separar a minha família porque eu sou pobre, preta e não tenho um teto?”, diz, quando seus olhos já não conseguem mais segurar as lágrimas.
Rita diz que fugiu de casa aos 15 anos depois que a mãe, usuária de drogas, passou a explorá-la sexualmente. Aos 16, conheceu o atual companheiro. O filho, de 3 meses, nasceu dois anos depois. Todas as coisas do bebê cabem em uma bolsa pequena de maternidade, onde estão a carteira de vacinação – em dia – e a certidão de nascimento. “Quando eu lavo o macacão, ele precisa ficar embrulhado na mantinha... (silêncio) porque não tenho outro” , diz, em meio a um choro compulsivo.

Criar um filho na rua é estar preparado para responder a perguntas dramáticas. “Mãe, por que a gente mora na rua?” e “O que é “meter bala [atirar]?” foram algumas das questões que Valéria*, 27, já precisou explicar para a filha mais velha, de 4. Uma delas, aconteceu na noite em que foi anunciado o novo presidente do país. “Passaram uns caras comemorando a vitória. Quando o sinal fechou, eles abriram o vidro do carro e gritaram que iriam passar aqui e meter bala na gente. As crianças acharam que eles estavam festejando e começaram a pular e gritar também. Depois, vieram as perguntas.”

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Mário*, 27 anos - Enquanto um trabalha – ele como catador de lixo, e sua mulher como diarista –, o outro precisa cuidar das duas filhas pequenas (Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

O desafio da sobrevivência

Não há romantismo em crescer nas ruas. As condições extremas levam a problemas extremos. Há famílias, como as que conhecemos nesta reportagem, que se esforçam para garantir a sobrevivência dos filhos com um pouco de dignidade. Mas há, também, as que exploram – como aconteceu com Rita antes de ela fugir –, as que são incapazes de cuidar por uso de drogas lícitas ou não, dentre outros motivos. E as que precisam conviver com o vício de outros moradores.

Há dois anos, os filhos de Valéria – o caçula tem 4 meses – crescem em uma praça na zona sul de São Paulo, de frente para um supermercado e ao lado de uma estação de metrô. Pelo menos outras dez crianças e 30 adultos vivem ali. Alguns, usuários de drogas. “A gente tem medo, mas ou enfrenta o pavor e come ou vejo meus filhos passando fome”, diz, sobre escolhas que nenhuma mãe deveria ser obrigada a fazer.

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É uma incógnita o impacto da situação de rua na vida dessas crianças. A enfermeira Anna Maria Chiesa, especialista em saúde coletiva na Universidade de São Paulo, diz que ser “generalista e determinista” sobre o futuro delas é um engano. Ela acredita que ninguém pode dizer que a vida, como a desses pequenos, será um fracasso. Anna, que também é consultora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, instituição focada no desenvolvimento integral da primeira infância, complementa: “O que se pode dizer é que essa criança vai precisar de um esforço muito maior para recuperar alguns desgastes. Viver com a família, ter um teto, acessar serviços de saúde, frequentar a escola, por exemplo, reduzem esses riscos.”

Uma pesquisa recente feita no Centro Médico de Boston, do Observatório da Saúde da Criança nos Estados Unidos, e publicada no periódico internacional Pediatrics, mostrou algo que quem acompanha o dia a dia das famílias já sabe: bebês, mesmo ainda na gestação, e crianças em situação de rua por mais de seis meses são mais suscetíveis a problemas de saúde em razão da vulnerabilidade. O levantamento, feito entre 2009 e 2015, incluiu 20 mil famílias.

“Essas descobertas confirmam o que já sabíamos sobre como o estresse da falta de moradia afeta a saúde das crianças. Mas isso nos ajuda a determinar quais crianças estão em maior risco.” A moradia possível oferece riscos. Em um dos barracos visitados pela reportagem, uma das crianças tinha sido mordida por ratazana. Viroses, diarreias e problemas respiratórios são as doenças mais comuns.

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O mundo de quem vive em situação de rua cabe em carrinho, caixa ou no canto de um pequeno cômodo(Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

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O que a vida quer da gente é coragem, escreveu Guimarães Rosa. Foi o que Priscila*, de 16 anos, precisou, em uma madrugada de dezembro de 2016. Naquele dia, um incêndio varreu a comunidade onde vive, a favela do Cimento, na zona leste de São Paulo. “Lembro de ouvir gritos e do cheiro de fumaça. Segurei minha filha, na época com 6 meses, nos braços e peguei uns documentos. Não deu para salvar mais nada. Tinha acabado de comprar umas coisinhas para ela. A gente já não tem muito, e o fogo levou tudo.”

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Priscila não sonhou construir família sem ter um CEP. Um despejo obrigou ela e sua mãe a migrarem de Recife, em Pernambuco, para São Paulo, onde os avós maternos tinham conseguido se instalar em uma moradia informal.

Quem vive em ocupações, praças, embaixo de viadutos e até dentro de carcaças de veículos é considerado em situação de rua. “Ó, ó”, diz a filha, de 1 ano, para os brinquedos, organizados em duas caixas coloridas ao lado da cama de casal onde dorme com os pais. Na lateral do cômodo, mais caixas de papelão, que fazem as vezes de armário e abrigam a história da família. Descalça, a menina caminha por tapetes que cobrem o chão de terra batida.

Déficit nas creches

No Cimento, como os moradores se referem à comunidade erguida ao lado de uma estação de trem e em área de carga e descarga de caminhões, criança pequena não pisa na rua. “Só os grandes podem”, explica um primo da menina, 6 anos, que ainda é pequeno segundo as regras dali. A menina está em casa porque não há vaga na creche.

Também é o caso das duas filhas de Mário*, 27, a menor com 2 anos. Quando o salário passou a servir ou para pagar o aluguel ou para alimentar a família, ele decidiu viver em situação de rua. No cômodo-casa que levantou na comunidade, vive Mário, a mulher e as crianças. Se a companheira consegue trabalho como diarista, ele cuida das meninas. Do contrário, trabalha como catador. “Quem puxa carroça? Burro!”, diz, ressentido. “Se minhas filhas estivessem na creche, eu e minha mulher poderíamos trabalhar mais. Mas cadê lugar?” Na capital, segundo dados da prefeitura, cerca de 20 mil crianças estão na fila à espera de uma vaga.

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E assim, do jeito que é possível, todos tocam o dia a dia. Há três gerações, a família de Priscila luta para se livrar das ruas. “Difícil” é a única palavra que o avô dela, Claudio*, 59, encontra para descrever as incontáveis vezes que protegeu a mulher e os filhos, então pequenos, de tempestades e do frio com uma pedaço de lona sob um carrinho onde armazena objetos para reciclagem. “Não tem folga para quem precisa garantir o amanhã.”
Claudio puxa carrinho junto com o marido de Priscila. Com o trabalho, mantém as duas casas – na dele, moram a mulher, uma filha e sete netos. Nenhum dos pequenos sai para ajudá-los, ele diz. “Lugar de criança não é na rua, é na escola. Para eles, eu quero outro futuro.” Naquele dia, os uniformes das crianças estavam todos pendurados em um varal do lado de fora da casa, na calçada.

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Rita*, 18 anos - Ela fugiu de casa aos 15 anos, quando a mãe, usuária de drogas, começou a explorá-la sexualmente. Aos 16, conheceu o atual companheiror (Foto: Ênio Cesar / Editora Globo)

Entre cuidados e carinhos

“As famílias em situação de rua são as primeiras a chegar na escola para buscar os filhos”, diz Marta Marques, coordenadora do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar). Fundada em 1946, a entidade atende cerca de 10 mil pessoas em situação de rua diariamente em São Paulo. “A maioria das pessoas imagina que as crianças nessa condição vivem em abandono, quando nossa experiência de décadas mostra o contrário. O cuidado e o carinho são muito intensos. Os pais começam até a cuidar da própria saúde por conta do filho.”

As equipes do Bompar sensibilizam escolas sobre a situação das crianças sem endereço fixo. A família de Priscila integra a lista graças à parceria do centro com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, responsáveis pelo programa Consultório na Rua, que garante atendimento às gestantes, mães e bebês nas ruas de São Paulo. Graças ao trabalho da equipe, as gestantes recebem enxoval, fazem o pré-natal, têm um chá de bebê coletivo e um ensaio fotográfico – a primeira foto impressa que Priscila teve na vida é a do álbum da festa.

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No Brasil, quase 7 milhões de famílias não têm uma casa para morar. “Hoje elas não têm alternativa. O modelo de investimento em assistência social é em etapas, pura e simplesmente”, diz a advogada e assessora jurídica Maria Eugenia Trombini, da Terra de Direitos, uma organização de direitos humanos. Sem um CEP, empregadores desistem de contratar, como aconteceu com Lurdes*, mãe de duas meninas, uma de 7 anos, outra de 2. “Perdi a vaga porque moro em barraco. Mas não me julgo moradora de rua, porque tenho um teto.” A cada 15 dias, ela trabalha três vezes por semana como faxineira. Nos outros, o marido sai para recolher material para reciclagem. Com o que entra, compram o básico e guloseimas que as filhas gostam, como iogurte de morango. Se a renda deles chegasse a R$ 2 mil, diz, alugariam uma casa.

Mãe solteira, Juliana*, 35, conheceu Lurdes no Cimento depois de perder o emprego. Sem condições de manter o aluguel, mudou-se para um dos casebres. “Imagine que, de repente, no seu mundo não tem mais banheiro para dar banho nas crianças, água na torneira, vaso sanitário.” Ela é mãe de três, o menor tem 9 meses. Enquanto a mais velha vai para a escola, os outros dois, sem vaga na creche, ficam brincando e vendo TV em casa, impossibilitando qualquer jornada de trabalho. Graças ao auxílio do Bolsa Família, diz, não passam fome. Ao lado dos filhos, já viveu quatro tentativas de reintegração de posse no terreno onde moram. “Não queira saber o que é ter trator de um lado e a Rota [polícia] do outro.” A rua é para os fortes.

Ser pai e mãe é, sempre, desafiador. Em condições de vulnerabilidade, é ainda mais difícil. Mas essas famílias não escolheram outra saída que não a melhor para os filhos.

Quer ajudar?

É possível colaborar com organizações que atendem pessoas em situação de rua presencialmente ou com doações em dinheiro. Conheça algumas iniciativas:

Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto
Além de roupas e itens de higiene, precisa de enxovais para distribuir às mães em situação de rua.
São Paulo, tel. (11) 2692-3165; marta.saudenarua@gmail.com

Paróquia São Miguel Arcanjo / Pastoral Povo da Rua
Liderada pelo padre Júlio Lancellotti, defensor e ativista das pessoas em situação de rua, recebe todo tipo de doação, inclusive qualquer objeto que sirva como abrigo, como lona e barraca.
São Paulo, tel. (11) 2692-6798; julio@oarcanjo.net

Legião da Boa Vontade
A associação tem 82 unidades de atendimento espalhadas pelo Brasil e auxilia famílias de baixa renda. Doações podem ser feitas pelo site www.lbv.org/doar/

Vó Dolores
Não é um abrigo, mas um projeto voluntário cuja missão é ajudar famílias carentes com crianças pequenas e gestantes. Aceitam artigos de criança, adulto, higiene pessoal.
Belo Horizonte, MG, tel. (31) 98836-8534 (WhatsApp) e (31) 2516-5699; projeto.vodolores@gmail.com

Pequena Casa da Criança
Atende crianças a partir de 2 anos e meio ou mais, jovens, adultos e idosos. A maior demanda é de crianças. Recebem doações de alimentos, roupas, calçados e via depósito bancário.
Porto Alegre, tel. (51) 3076-0524; projetossociais@pequenacasa.org.br

*A identidade dos personagens foi preservada a pedido dos entrevistados.
A reportagem começou a ser realizada em outubro/2018

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