Rio Bairros

Rio das Pedras rejeita projeto de verticalização da prefeitura

De acordo com a proposta original, o gabarito seria elevado em área bem maior
Próxima à Vila do Pan, a comunidade de Rio das Pedras também sofre com a instabilidade da área onde foi estabelecida Foto: Fabio Cordeiro
Próxima à Vila do Pan, a comunidade de Rio das Pedras também sofre com a instabilidade da área onde foi estabelecida Foto: Fabio Cordeiro

RIO — Pelas ruas de Rio das Pedras, cerca de 500 cartazes espalhados trazem uma mensagem clara: os moradores rejeitam o projeto de verticalização da comunidade, idealizado pela prefeitura, apesar de reivindicarem melhorias. Em maio, a prefeitura publicou um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para potenciais interessados em tocar o projeto, e atualmente 11 construtoras estão estudando o negócio.

De acordo com o plano, a área pela qual se estende Rio das Pedras receberia prédios de até 12 andares graça à emissão de Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), o que possibilitaria o aumento do gabarito de construção. Mas a área afetada pela medida seria muito maior: vai do Itanhangá até o início da Avenida Embaixador Abelardo Bueno, passando pelo Anil. Temendo remoções e indignados com a hipótese de serem obrigados a pagarem para morar em apartamentos que não desejam, moradores montaram uma comissão de mobilização contra o projeto, e amanhã, quando haverá uma audiência pública na Câmara dos Vereadores para discuti-lo, farão um protesto na Cinelândia.

O objetivo da prefeitura é realizar uma Operação Urbana Consorciada (OUC) em Rio das Pedras, ou seja, uma parceria público-privada. Construtoras arcam com as obras de urbanização da comunidade e, em troca, beneficiam-se com a aprovação do aumento do gabarito na área. Há pouco mais de dois meses, ao tomarem ciência da possibilidade da OURC, por meio de notícias em jornais e nas redes sociais, moradores de Rio das Pedras começaram a se articular. Um grupo chamado Rio das Pedras Contra Crivella foi criado, com mais de 20 mil participantes no Facebook. Uma comissão de 15 pessoas organiza vaquinhas para comprar material de protesto e buscar contatos na Câmara dos Vereadores e em órgãos como Defensoria Pública e Pastoral da Favela. No fim de agosto, uma manifestação foi realizada na Avenida Engenheiro Souza Filho, que corta a comunidade, e, amanhã, a comissão promete levar 20 ônibus lotados até o Centro.

Quando O GLOBO-Barra esteve em Rio das Pedras, há duas semanas, pôde sentir o nível de indignação dos moradores: centenas de pessoas e um carro de som se concentravam na praça na entrada da comunidade, à espera da equipe.

Um dia antes do protesto de agosto, numa tentativa de acalmar os ânimos, Crivella publicou um vídeo em sua página no Facebook afirmando que os moradores não seriam retirados de Rio das Pedras, mas trocariam suas casas por apartamentos do Minha Casa, Minha Vida, que teriam de comprar por meio de financiamento na Caixa Econômica Federal.

A explicação acabou acirrando os ânimos, diz Andrea Ferreira, membro da comissão. Segundo ela, a prefeitura divulgou números contestados pela associação de moradores, tanto de população quanto de renda.

— Soubemos que teríamos que financiar o que já temos. O projeto é cheio de prédios bonitos, mas não temos condição de ter essa dívida. O prefeito diz que as pessoas aqui ganham entre três e cinco salários mínimos, mas não é verdade. O povo ganha bem menos. Sem contar que as pessoas não estão acostumadas a viver em apartamentos — afirma Andrea, reclamando também da falta de consulta popular. — E como se faz um projeto desses sem nos comunicar? Sem haver reuniões com os moradores? Querem nos empurrar goela abaixo um financiamento num momento de crise.

Segundo a prefeitura, 80 mil pessoas moram em Rio das Pedras, mas a Associação de Moradores diz que o número correto está em torno de 140 mil. No início do ano, agentes do município entraram na comunidade para fazer um cadastramento e aplicar um questionário sobre temas como o desejo de legalizar imóveis. Como queriam um encontro com o prefeito primeiro, porém, muitos moradores boicotaram a ação.

No mês passado, a comissão de moradores estabeleceu contatos com vereadores. Há duas semanas, uma comissão especial, liderada por Chiquinho Brazão e Carlo Caiado, foi criada na Câmara para acompanhamento do projeto de OUC. O primeiro ato foi uma reunião, organizada por Brazão. No encontro, realizado na prefeitura, Crivella prometeu que nenhum tijolo seria mexido sem aprovação popular. Mesmo assim, os presentes saíram insatisfeitos.

— O prefeito deveria vir à comunidade nos ouvir. Tem muitas coisas da realidade de Rio das Pedras que ele não conhece. Aqui muita gente nem salário tem. Não há gente rica com dinheiro sobrando. Vamos voltar a pagar por uma casa que já pagamos durante a vida inteira? — indaga Lorena de Carvalho, da comissão, que representou os moradores na reunião.

Prefeitura estuda permitir aumento de gabarito do Itanhangá até a Avenida Embaixador Abelardo Bueno Foto: Editoria de Arte
Prefeitura estuda permitir aumento de gabarito do Itanhangá até a Avenida Embaixador Abelardo Bueno Foto: Editoria de Arte

Incerteza quanto a remoções

O plano da prefeitura prevê a construção de cerca de 30 mil apartamentos e salas comerciais em condomínios de prédios com 12 andares, que seriam erguidos em vias com saneamento e áreas de lazer. O custo, estimado inicialmente em R$ 5,4 bilhões, seria viabilizado pelos Cepacs, num projeto semelhante ao do Porto Maravilha. Após a realização do estudo, que precisa contemplar aspectos relacionados a habitação, mobilidade, meio ambiente e infraestrutura, seria feito um processo licitatório. Mas, para a OUC ser concretizada, um projeto de lei específico precisa antes ser aprovado na Câmara. O grupo autorizado a fazer os estudos, em julho, é formado pelas construtoras MRL/MRV, Quatro de Janeiro, Direcional Engenharia, Tenda, Cury, Mega, João Fortes, Novolar, Cattleya, Ghimel e Cofranza.

As empreiteiras não atuariam apenas em Rio das Pedras, uma comunidade já consolidada, erguida em terreno pantanoso e quase vizinha à Vila do Pan — que sofre com problemas de fundação até hoje. No PMI, a prefeitura publicou um mapa que mostra que Rio das Pedras é apenas uma pequena parte da área a ser explorada via Cepacs. E nela, há muitos terrenos cheios de verde e sem construções.

— Esse projeto é para beneficiar construtoras — diz Evandro Teixeira, membro do Rio das Pedras Contra Crivella, ecoando uma suspeita de muitos moradores.

O pipoqueiro Jorge Batista acredita que o projeto será na verdade uma "limpeza social".

— Estamos no meio de uma área estratégica, porque a Barra não tem mais para onde crescer — diz o morador, que trabalha até tarde e elogia o estilo de vida de Rio das Pedras. — No meio da madrugada vejo as pessoas circulando tranquilamente, algo raro no restante da cidade. Mexer nessa geografia acho que vai ser ruim.

Casas se debruçam sobre águas poluídas na comunidade Foto: Fabio Cordeiro
Casas se debruçam sobre águas poluídas na comunidade Foto: Fabio Cordeiro

O Núcleo de Terras e Habitação (Nuth) da Defensoria Pública do Rio está prestando assessoria jurídica para a comunidade, e uma das medidas tomadas foi a tentativa de obter o levantamento dos proprietários dos terrenos na área da OUC. Entretanto, o cartório responsável disse que não seria possível dar todas as informações requisitadas.

A coordenadora do Nuth, Maria Julia Miranda, diz que a Defensoria precisa ter acesso ao projeto formalizado para poder agir. Ela estranha, aliás, o fato de Crivella ter apresentado, no vídeo do Facebook, perspectivas mostrando como ficaria Rio das Pedras mesmo antes da conclusão oficial dos estudos pelas construtoras.

— É estranho, sobretudo porque ele diz que vai reassentar as pessoas em prédios, o que contradiz a própria lei orgânica municipal (artigo 429), que determina que o município respeite a urbanização e a regularização fundiária das favelas consolidadas. Remoções não são permitidas, a não ser que haja risco para os moradores, e é preciso ter provas disso — explica Maria Julia. — A legislação orgânica também expressa a necessidade de haver debates com a comunidade. As soluções precisam ser encontradas de forma participativa.

Segundo a defensora, mesmo que os moradores saiam de suas casas e vão para apartamentos, continuando em Rio das Pedras, terá se configurado um processo de remoção.

O Nuth acompanhou a reunião dos moradores com o prefeito, e destaca alguns pontos. Primeiro: a apresentação não pôde ser filmada, para ser exibida na comunidade depois e ajudar a esclarecer dúvidas. Também não foi possível concluir, segundo o núcleo, se o número de unidades habitacionais previstas corresponde ao de famílias que residem hoje em Rio das Pedras. E Crivella não explicou o que aconteceria com as famílias que não pudessem arcar com o financiamento do apartamento e o valor do condomínio.

Jair Moreira é um dos moradores mais antigos de Rio das Pedras. Chegou em 1988, mas já fazia parte da associação de moradores desde 1979, quando contribuiu com sua fundação, para ajudar parentes que já residiam no local.

— Quando cheguei aqui, era só lama e jacaré. Na época do Brizola, ele botou uma máquina na lagoa para ajudar a tirar areia e aterrar a área. E puseram placas aqui avisando que seriam feitas casas populares, o que nunca aconteceu. O povo, então, decidiu ocupar a área. Foi muita luta até que o prefeito Saturnino Braga formalizasse a doação dos terrenos — relembra.

Para Moreira, a prefeitura deveria primeiro ajudar a parte mais necessitada da comunidade, que fica perto da região da Rua Velha. Em 2006, um incêndio condenou diversas casas no Areal 2 e deixou muita gente desabrigada. Atualmente, 25 famílias vivem em barracos improvisados e condições precárias. Ele também acha difícil que a iniciativa de construir prédios na área seja bem-sucedida, devido ao tipo de terreno.

— É só ver como ficou a Vila do Pan — afirma Moreira, que ganha uma aposentadoria de R$ 900 e diz que não teria condições de custear a vida num condomínio. — Para mim, é um privilégio morar aqui; a maioria dos moradores trabalha na Barra ou na Zona Sul; é um ponto bom. Vai ver é por isso que tem esse projeto, para não deixarem os pobres viverem perto dos ricos.

A equipe do GLOBO-Barra enviou uma série de perguntas à assessoria de Marcelo Crivella. Em resposta, a prefeitura disse apenas que o projeto de urbanização de Rio das Pedras está em fase conceitual, e estudos de viabilidade vêm sendo realizados por um consórcio que aderiu ao Procedimento de Manifestação de Interesse. A previsão é que o trabalho esteja concluído até dezembro.

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