Exclusivo para Assinantes
Mundo

Envelhecimento esvazia cidades e desafia Portugal

Em 50 anos, país pode ter só metade da população em idade produtiva
Moradores idosos na Alfama, em Lisboa: população portuguesa está envelhecida e encolhe há nove anos consecutivos Foto: ANA BRIGADA / The New York Times
Moradores idosos na Alfama, em Lisboa: população portuguesa está envelhecida e encolhe há nove anos consecutivos Foto: ANA BRIGADA / The New York Times

LISBOA - A cidade de Silves concentra as suas casas brancas de telhas laranja entre o imponente castelo, no alto do morro, e o Rio Arade. De um oposto ao outro, as vielas e ruas históricas desertas aguardam a chegada do verão e dos turistas à região do Algarve. A primavera já está mais quente e a temperatura é ideal para um passeio. Mesmo assim, existe um vazio no ar. Não há gente. O local onde vivem cerca de seis mil pessoas é um dos retratos da cena atual de Portugal, que em 50 anos poderá ter apenas metade dos habitantes em idade ativa em um país cuja população é envelhecida e encolhe há nove anos consecutivos.

Fora do eixo Lisboa-Porto, onde estudantes, imigrantes e viajantes misturam-se aos locais e povoam as cidades, é possível identificar nos rostos das pessoas que moram em aldeias ou em cidades pequenas como Silves a pior face do desequilíbrio demográfico português. Em 2017, nasceram 86.180 portugueses e morreram 110.197. A diferença de 24.017 é a maior deste século, dizem os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Instituto Nacional de Saúde (INSA).

LEIA MAIS: PS português busca se descolar de caso de corrupção envolvendo ex-premier

Auditoria aponta falhas primárias no combate a incêndios em Portugal

Concessão de vistos gold é 'prostituição' da cidadania europeia, diz eurodeputada

O número de mortes avança este ano em proporção preocupante. De 1º de janeiro a 9 de junho, morreram 54.873 pessoas (o mais alto em uma década), 3.131 a mais que no mesmo período de 2017, informa a Direção Geral da Saúde. Do total, 72% são idosos com mais de 75 anos, vítimas, sobretudo, de uma intensa epidemia de gripe.

Albufeira: ruas no interior da cidade na região portuguesa do Algarve ficam desertas: muitos idosos já não podem sair de casa por problemas de saúde
Foto: Gian Amato
Albufeira: ruas no interior da cidade na região portuguesa do Algarve ficam desertas: muitos idosos já não podem sair de casa por problemas de saúde Foto: Gian Amato

RASTRO DE ABANDONO

Os dados nacionais ganharam um novo embasamento, dessa vez do relatório trienal de envelhecimento da Comissão Europeia. Em 2070, Portugal terá oito milhões de habitantes, dois milhões a menos que atualmente, uma diferença de 23%. A população apta a trabalhar, segundo critérios do Eurostat, é de 15 a 64 anos e esta faixa sofrerá uma redução de 37%, passando dos atuais 6,7 milhões para 4,2 milhões. Ou seja, quase a metade da população portuguesa em 2070 poderá ser formada por pessoas fora da escala produtiva. O relatório alerta que o país terá o potencial mais baixo da Europa em termos de crescimento da economia nacional. Hoje, a expectativa de vida é de 77 anos para homens e 83 para as mulheres. A idade mediana dos residentes é de 44,4 anos.

No ultimo congresso do Partido Socialista (PS), o premier António Costa anunciou que passará a dar mais atenção ao problema demográfico. Ele afirmou que a prioridade do próximo Orçamento do Estado será tentar equilibrar o balanço por meio de um programa capaz de gerar empregos e fomentar o empreendedorismo, criando condições para o regresso dos jovens portugueses que deixaram o país nos anos de crise econômica.

Em relação ao aumento da natalidade, Costa garantiu que o governo irá propor um acordo para as novas gerações para conciliar a vida profissional e familiar, introduzindo uma política de horários de trabalho adaptados às fases da vida para os jovens casais “terem os filhos que quiserem”.

Na sessão com militantes do PS em Évora, em maio, Costa explicou:

— É preciso criar condições para que seja possível aumentar a natalidade. Os jovens têm de ter a oportunidade, não só de encontrar trabalho, mas trabalho digno, pago a preço justo. Sem casa e com trabalho precário, ninguém constitui família, ninguém tem filhos.

Silves é uma das cidades portuguesas que tem "encolhido" Foto: Gian Amato
Silves é uma das cidades portuguesas que tem "encolhido" Foto: Gian Amato

Em Portugal, quem nasce longe das capitais primeiro se qualifica em uma universidade distante de casa, luta para arrumar um emprego em Lisboa ou Porto e, quando não consegue, emigra para países que pagam maiores salários que Portugal, onde o vencimento mínimo é de € 676. Na vizinha Espanha, o mínimo é de € 858.

Fica um rastro de abandono nas cidades periféricas, relegadas aos idosos. Apesar de ávidos por contato, uma parte dos idosos mantém certa desconfiança em relação a estranhos. Um senhor, que não quis revelar o seu nome, reclamou da falta de calor humano em Silves.

— E olha que hoje até tem movimento — disse ele, apontando para um grupo de não mais que dez pessoas ao redor da charmosa Praça do Município.

Ele também não revelou a idade e disse ter parado de trabalhar há tantos anos que nem se lembra mais. Falta gente, sobra paz, ao menos, garante ele. Uma sorte, porque, além da solidão, os idosos que ficam para trás estão sujeitos à violência e a todo o tipo de golpe. Na última semana, um senhor de Santo Tirso, no Norte, imerso na tristeza com a partida do filho para Algarve, entregou € 50 mil a uma vidente, que havia prometido a reintegração da família. A mulher acabou detida pela Polícia Judiciária do Porto.

Em Albufeira, cidade da costa algarvia, a invasão turística é percebida nos cartazes em diversos idiomas afixados em diferentes tipos de comércio na região perto do litoral. No interior da cidade, no entanto, as ruas são um deserto. Uma mulher que se identificou apenas como “São” disse que a sua mãe, uma octogenária, por motivos de saúde, nem à igreja pode ir e contenta-se em assistir à missa pela TV:

— Minha mãe gostava de passear e agora fica em casa, como muitas outras senhoras.

População diminuirá 20% em 50 anos
População total
População em idade ativa (15 a 64 anos)
10,2
9,9
9,5
9,1
8,5
8,0
6,5
6,0
5,3
4,8
4,5
4,2
2020
2030
2040
2050
2060
2070
Idade média da população
vem aumentando
44,4
44
43,5
43,1
42,6
42,1
41,7
41,2
40,8
40,4
40
39,6
39,3
38,8
38,5
38
38
37,5
2000
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
2017
Fonte: Relatório trienal de envelhecimento da Comissão Europeia
População diminuirá 20% em 50 anos
População total
População em idade ativa
(15 a 64 anos)
10,2
9,9
9,5
6,5
6,0
5,3
2020
2030
2040
9,1
8,5
8,0
4,8
4,5
4,2
2050
2060
2070
Idade média da população
vem aumentando
44,4
37,5
2000
2017
Fonte: Relatório trienal de envelhecimento da
Comissão Europeia

Nos jornais, quase diariamente há uma notícia de um idoso encontrado morto sozinho em sua casa por algum vizinho ou comerciante que notou a ausência prolongada por uma série de dias. A dificuldade em pedir socorro é pior nas cidades mais afetadas pelos incêndios que assolaram o país em outubro de 2017, nas quais há uma parte de domicílios ainda sem rede de telefone fixo, que está sendo restabelecida. Recentemente, um crime chocou o país. Aconteceu em Barreiro, município de Setúbal, onde o filho matou a facadas o pai e a mãe, ambos acima dos 70 anos.

VEJA TAMBÉM: Imigrantes ilegais vivem precariamente na produção de azeitona em Portugal

Premier de Portugal é pressionado a também expulsar diplomatas russos

Portugal: sindicatos anunciam greves para reaver perdas com a austeridade

Os casos de maus tratos foram computados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e inseriram Portugal em um ranking nada honrado. Em um levantamento feito em 53 países, Portugal está entre os cinco da Europa que pior cuidam dos mais velhos. A OMS verificou que 39% dos idosos portugueses são vítimas da violência. São, em média, três crimes por dia e 19 por semana. Em 2016, foram 1.009 crimes registrados e, há cinco anos, em 2013, 713 crimes oficialmente notificados.

— Portugal investe pouco no apoio ao idoso. É urgente criar uma bolsa de cuidadores com competências técnicas e humanas para que estejam aptos a prestar cuidados. As instituições que se dedicam a receber os idosos podiam investir os seus lucros na criação de outros lares que permitam receber os idosos com carências econômicas. É dever de cidadania proteger, cuidar, acolher, respeitar, confortar e amar o idoso — disse a médica Antonieta Dias, vice-presidente da Comissão de Proteção ao Idoso de Portugal.

Em uma inédita tentativa de amenizar o isolamento e auxiliar nos pedidos de socorro, a prefeitura de Guimarães pediu a uma empresa de tecnologia a criação de um dispositivo que estivesse sempre com o idoso, para facilitar o acompanhamento e monitorá-lo 24 horas por dia. Assim nasceu o Guimarães 3000, que nada mais é que um colar conectado à internet e aos serviços de emergência dos bombeiros e da polícia. Até 350 idosos serão acompanhados em um primeiro momento até que o projeto esteja apto para todos na região.