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Rio

Prefeitura vai reduzir atendimentos nas Clínicas da Família para poder cortar gastos

Até o fim do ano, programa que beneficia cerca de 70% da população recuará ao patamar do início de 2016, que era 55%
Clínica da Família em Madureira Foto: Guilherme Pinto/16-11-2017 / Agência O Globo
Clínica da Família em Madureira Foto: Guilherme Pinto/16-11-2017 / Agência O Globo

RIO — Em meio ao caos que tomou as unidades públicas de saúde no Rio, a prefeitura decidiu reduzir o alcance de seu principal projeto de atendimento na rede básica. Até o fim do ano, o Programa de Saúde da Família, que beneficia hoje cerca de 70% da população, recuará ao patamar do início de 2016, quando a cobertura era de 55%. A ideia é que as equipes médicas passem a atuar apenas em 180 áreas consideradas pobres. O município admite que haverá demissões e calcula uma economia de R$ 400 milhões por ano.

O secretário-chefe da Casa Civil, Paulo Messina, que está capitaneando a reestruturação, explica que haverá um redesenho do sistema. Um estudo interno da prefeitura, que será concluído em três semanas, definirá o novo alcance do programa. Ele usará como base dados do Instituto Pereira Passos (IPP), que já identificou as regiões com os Índices de Desenvolvimento Social (IDS) mais baixos do Rio. A lista das comunidades e o número de moradores não foram divulgados.

— Entendemos que a estratégia de Saúde da Família deve continuar para as pessoas nas áreas com mais vulnerabilidade. As pessoas em locais de menor vulnerabilidade serão atendidas de forma ativa, indo até os postos de saúde — disse o Messina.

Com o novo perfil, quase um milhão de pessoas deve sair do Programa de Saúde da Família. Então, quando um morador de São Conrado, bairro com alto IDS, por exemplo, precisar da rede pública, ele terá que buscar atendimento num centro de saúde. Já o morador da Rocinha, de IDS baixo, continuará a receber tratamento diferenciado, com visitas da equipe médica em casa.

Messina vai reduzir o número de equipes de médicos da família e realocar parte do pessoal em outros setores. Ele também anunciou que vai repactuar os contratos com as Organizações Sociais (OS) que gerem o programa.

— Vai haver demissão, sem dúvida — afirmou. — Os gastos com o programa vão cair de cerca de R$ 1,5 bilhão para R$ 1,1 bilhão.

A prefeitura promete usar o dinheiro das Clínicas da Família em hospitais e unidades de média e alta complexidades, como as que fazem hemodiálise. Essa manobra, segundo Messina, acabaria com as dívidas que o município tem com clínicas, fornecedores e OSs. O orçamento de 2019 para a saúde terá redução de 12%: de R$ 6,01 bilhões para R$ 5,28 bilhões.

Entre políticos e especialistas em saúde pública, a medida é considerada, no mínimo, controversa. A presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio, Rita Helena Borret, destaca a economia para o sistema de saúde quando se investe mais no atendimento primário.

— O Rio economiza R$ 40 milhões por ano em internações graças ao Programa de Saúde da Família. Quando não há atenção primária, as doenças se agravam. O custo da consulta numa unidade de emergência é o dobro do valor pago numa unidade básica. Ou seja, diabetes, hipertensão e outras doenças, se acompanhadas e resolvidas por uma equipe na atenção primária, não vão se agravar e se tornar mais custosas.

Membro da Comissão de Saúde da Câmara dos Vereadores, Paulo Pinheiro (PSOL) afirma que a novidade foi vista com temor pelos funcionários de carreira da prefeitura:

— Está todo mundo de cabelo em pé. O que eles querem fazer é um retrocesso imenso. Cada real que se investe em prevenção é economizado na atenção secundária e terciária.

O subsecretário-geral executivo da Secretaria municipal de Saúde, Alexandre Campos, afirma que houve superdimensionamento da atenção básica. Para ele, a medida ajudará a corrigir um erro e a reduzir gargalos na fila do Sistema Único de Saúde (SUS).

Doente sem plano de saúde teme mudanças

Diferentemente do que se imagina, o público-alvo das Clínicas da Família não está apenas em comunidades carentes. Morador da Rua Doutor Santamini, na Tijuca, o engenheiro Ruyalex Lima, de 51 anos, conhece bem a importância do atendimento de saúde básica que fica perto de sua casa. Há dois anos, quando já não podia mais pagar a mensalidade do plano de saúde e teve pneumonia, buscou ajuda no Centro Municipal de Saúde Hélio Pellegrino, na Praça da Bandeira. Desde então, faz acompanhamento médico na unidade, assim como sua mulher, que está grávida, e sua filha de 7 anos.

Ontem, como faz todos os meses, foi até lá para dar continuidade a um tratamento contra tabagismo, iniciado há quatro meses.

— O atendimento é bem peculiar. A relação médico-paciente é muito próxima, e eles conhecem as nossas necessidades. Minha esposa está grávida de dois meses e faz o pré-natal aqui — disse o engenheiro, ressaltando o laço criado com a equipe que atende sua família. — Eu digo que é “meu médico”, porque ele vai à minha casa, telefona, se dedica. Ao contrário do que acontece no posto de saúde, onde já estou há quatro meses aguardando uma consulta com o pneumologista. Espero que a prefeitura volte atrás nessa decisão, pois vai influenciar na vida de muita gente.

As equipes do Programa Saúde da Família são conhecidos pela dedicação aos pacientes. Ontem, Consuelo Pelosi, de 28 anos, mãe de Ana Luísa, de apenas 20 dias, recebeu uma ligação inesperada de um agente comunitário, que lhe perguntou por que ainda não tinha levado a recém-nascida para a primeira consulta, o que deveria ter acontecido uma semana após o nascimento.

— Eu fiz meu pré-natal aqui (na Clínica da Família), eles dão todo o acompanhamento. É um trabalho fundamental, pois cobram, se preocupam com a família, com o ambiente de moradia — contou Consuelo.

‘Um retrocesso terrível’

Funcionária pública, Catarina de Freitas, de 67 anos, é atendida na mesma unidade há dois anos. Ela convive com um tumor cerebral que, apesar de não ser maligno, tende a se expandir. Já operou duas vezes para reduzi-lo.

— O atendimento é ótimo, as médicas vão à nossa casa, ligam para informar quando o exame está pronto. Se eu preciso ser atendida emergencialmente, venho e sou recebida. Mas, se eu tiver que passar a ir a um posto, será um retrocesso terrível. Acampar de madrugada, enfrentar filas enormes, disputar senhas. Como eu vou fazer? — perguntou a paciente, preocupada, ao saber sobre a intenção da prefeitura de restringir o serviço.