Rio

Vidas ainda aprisionadas em um antigo leprosário

No Hospital Curupaiti vivem 200 ex-pacientes. Alguns chegaram lá com hanseníase há meio século
Drama. Francisca: “Aos 9 anos fui diagnosticada. Meu pai tinha lepra e morava aqui. A doença acabou com minha família, pois fomos todos separados” Foto: Márcia Foletto / Marcia Foletto
Drama. Francisca: “Aos 9 anos fui diagnosticada. Meu pai tinha lepra e morava aqui. A doença acabou com minha família, pois fomos todos separados” Foto: Márcia Foletto / Marcia Foletto

RIO - “O médico me olhou dos pés à cabeça, com olhos cheios de dó”, lembra Armando Cândido Bezerra. Ele fecha os seus enquanto busca na memória aquela tarde de 1962. Logo recorda-se: um prédio na Rua São Cristóvão, o médico em silêncio, um envelope branco lacrado. Era a lepra chegando. Com apenas 21 anos, forte e sem nenhum problema aparente, ele foi aposentado. Depois o levaram para o Hospital Curupaiti, em Jacarepaguá, onde recebeu a matrícula 5.508. E lá ele ficou. Até hoje.

Seu Armando, de 74 anos, é um dos cerca de 200 antigos pacientes de hanseníase do maior hospital-colônia que o Brasil já teve. Fundado em 1929, Curupaiti era parte de um conjunto de 33 leprosários que existiram entre as décadas de 1930 e 1980. Nesse período, ser diagnosticado com hanseníase — nome que se deu à lepra em 1951 — era receber uma condenação. Com internação compulsória, o hospital carioca chegou a acolher dois mil doentes. Confinar os enfermos foi a solução das autoridades para evitar o contágio. Com a descoberta da cura e o fim da internação obrigatória, os pacientes se perguntaram: para onde ir? Sem laços familiares, a maioria fica nas colônias até morrer. Em meio à solidão, convivem com as sequelas da doença.

— Não tenho lugar fora daqui. O preconceito ainda é muito grande — acredita Seu Armando.

INSTALAÇÕES PRECÁRIAS

Em um terreno de 45 hectares (metade do bairro do Leme) na Taquara, o hospital é pouco conhecido mesmo entre moradores da região. Existem nove antigos pavilhões onde os internos residem, todos em mau estado de conservação, sendo um em ruínas e outro incendiado há poucos meses por um sujeito barbudo e roliço que mete medo nos outros colonos, especialmente quando bebe. O velho cinema, onde os doentes tinham sessões três vezes por semana, está aos pedaços. Também um coreto onde os casais namoravam foi consumido pelo tempo: raízes crescem entre as rachaduras do concreto.

O ABANDONO DO HOSPITAL CURUPAITI

O abandono está por todos os lados — até mesmo nas novas instalações. Transformado em Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária (Ieds), vinculado à Secretaria estadual de Saúde, a unidade teve seus 37 leitos hospitalares totalmente reformados em 2012. Mas as novas camas automáticas e os quartos pintados permanecem sem uso. Menos de um terço das instalações (apenas 12 leitos) está ocupado. Motivo: equipe médica desfalcada.

Desde 2010, a unidade, que atende diversas especialidades e pacientes de toda a região — não apenas colonos —, perdeu 21 médicos, 20 enfermeiros e 31 técnicos de enfermagem. A reposição tem sido inexistente em todas as áreas. Eram 15 assistentes sociais, por exemplo, e hoje são apenas três. Dermatologistas, eram 14. Hoje são cinco, sendo que uma médica está se aposentando e outra está há meses de licença.

— Faltam curativos em geral, itens básicos como gaze e atadura. Vários remédios também estão em falta, como o diclofenaco, usado para aliviar a dor — garante um antigo colono.

Leprosários foram, durante séculos, o destino final e sem esperança de incontáveis vidas. Na Idade Média, portadores da lepra eram obrigados a carregar um sino sempre que iam à rua, para que as pessoas se distanciassem. Para o coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas Pela Hanseníase (Morhan), Artur Custódio, o preconceito histórico é uma das causas do abandono das colônias.

— Na colônia de Tavares de Macedo, em Itaboraí, a única do estado além de Curupaiti, a situação se repete — alerta.— A Organização Mundial de Saúde defende que esses lugares precisam ter uma razão de existir. Mas as colônias foram feitas para as pessoas serem esquecidas lá dentro. Esse estigma afeta as políticas públicas até hoje.