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Como movimentos ultraconservadores conseguiram encerrar a exposição Queermuseu

Como movimentos ultraconservadores conseguiram encerrar a exposição Queermuseu

De um post de um site local, a controvérsia sobre a mostra em Porto Alegre se converteu num movimento de ameaças

FLÁVIA TAVARES COM DANIELE AMORIM
15/09/2017 - 19h48 - Atualizado 15/09/2017 20h02
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Colagem com obras da exposição do Santander Cultural. A mostra ficou aberta 26 dias (Foto: Época)

Eram 8h21 da quarta-feira, dia 6 de setembro, quando Cesar Augusto Cavazzola Junior publicou um texto no site Lócus, com o título “Santander promove pedofilia, pornografia e arte profana em Porto Alegre”. Dias antes, Cesar visitara, com três amigos, a exposição Queermuseu, no Santander Cultural, na capital gaúcha. Algumas das 263 obras da mostra sobre o universo LGBTQ o chocaram. “Fiz as imagens e escrevi o texto porque algumas crianças e adolescentes circulavam pelo local e não havia qualquer restrição ou indicação do teor sexual da exposição”, ele diz. Cesar, um jovem advogado e professor de Direito que escreve para o portal conservador de Passo Fundo cuja página no Facebook tem pouco mais de 1.900 seguidores, discorreu em seu post sobre o que considerou “os mais variados ataques à moral e aos bons costumes que se possa imaginar”. É possível que Cesar desejasse que sua opinião repercutisse, como deseja a maioria dos que se expressam em rede. É improvável que ele imaginasse o tamanho da reverberação que sua publicação, rastreada como a primeira da celeuma que viria a seguir, causaria. Postagens e comentários contrários à exposição se alastraram. Grupos liberais e ultraconservadores passaram a se manifestar. O Santander decidiu encerrar a exposição no domingo, dia 10. Artistas e militantes se manifestaram em frente ao centro cultural do banco contra o fim da mostra. O debate na imprensa e na virtualidade de caixas de comentários e redes sociais se acirrou e se concentrou na questão dos limites da liberdade de expressão. No plano real, o embate envolveu ameaças, agressões e medo.

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A exposição, com obras de Lygia Clark, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Adriana Varejão, foi aberta no dia 15 de agosto. O material de divulgação da mostra incluiu 2 mil catálogos de 400 páginas com reproduções das obras e explicações sobre elas. Até o dia 6 de setembro, não houve incidentes – a média de público era de 700 pessoas por dia. Quando amigos o informaram do texto de Cesar, o segurança patrimonial Felipe Diehl, uma dessas figuras que prosperam com videocomentários em páginas do Facebook e conhecido em Porto Alegre por sua devoção ao ideário do deputado Jair Bolsonaro, do PSC do Rio de Janeiro, e do filósofo ultraconservador Olavo de Carvalho, resolveu visitar a Queermuseu na própria quarta-feira. Trajando uma camiseta com os dizeres “Sou machista, sim”, Diehl, um também jovem ex-militar, gravou um vídeo com uma câmera pequena, a pilhas, classificando as obras como “p...ria” e “sacanagem”. Depois de perguntar a funcionários da exposição se eles eram “tarados” ou “pedófilos” e para alguns adolescentes que estavam ali se eles gostavam de pornografia, Diehl foi convidado a se retirar do local. A exposição ficou fechada na quinta-feira, como já estava programado por causa do feriado de Independência. Ao reabrir, na sexta-feira, o instituto informou que não eram mais permitidas filmagens. Diehl voltou ao Santander Cultural. Ele interpelou o artista Gilberto Perin, que conversava com o público. Diehl perguntou ao artista se ele era pedófilo. Seu amigo Rafinha BK, outro blogueiro da mesma linha, também filmou as obras com comentários indignados sobre o conteúdo da mostra. Diehl e Rafinha BK têm um histórico de atritos com movimentos e militantes de esquerda. Em 2016, Diehl promoveu um “rolezinho reaça” na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que acabou em pancadaria. Rafinha BK é proibido de entrar na Assembleia Legislativa de Porto Alegre por agredir a deputada estadual Juliana Brizola, neta de Leonel Brizola. Ambos postaram seus vídeos na sexta-feira, dia 8. Somadas, suas páginas individuais em redes sociais têm em torno de 25 mil seguidores. Diehl ainda é um dos fundadores da página Direita ao Vivo, seguida por 122 mil pessoas. Os vídeos viralizaram. No sábado, eles voltaram à exposição. Diehl confrontou o curador Gaudêncio Fidelis. “Ele me perguntava se eu sou pedófilo, se sou pederasta, se fui criado em casa de p...ria”, diz Fidelis. No domingo, a exposição não abriu.

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Entre a postagem do advogado Cesar e a manhã de domingo, quando a direção do Santander decidiu encerrar a mostra, as caixas de e-mails de funcionários do banco passaram a ser inundadas por mensagens de repúdio ao conteúdo da Queermuseu. Algumas dezenas com o mesmo endereço de remetente, de entidades religiosas, por exemplo, mas com assinaturas diferentes. A página do Santander Cultural no Facebook também recebeu um volume muito além do normal de comentários. Um levantamento interno do Santander mostrou que o nome do banco teve o dobro de menções nas redes em três dias do que tem na média mensal. O banco não confirma esse dado oficialmente. Mas fontes reconhecem que a explosão virtual de barulho sobre o caso foi tamanha que dá a quase certeza de que tenha sido gerada por robôs. Na prática, isso quer dizer que as menções são fruto de pessoas reais reagindo a posts e notícias sobre o caso. Mas que para tanta gente ter conhecimento do assunto esses posts foram impulsionados por máquinas. Não é incomum blogueiros e sites de todos os matizes ideológicos recorrerem a essa trapaça para aumentar o alcance de suas posições on-line. Endossadas por um falso volume de opiniões similares às suas, pessoas reais passam, então, a compartilhar esse conteúdo. O efeito pode ser real, mas é gerado artificialmente.

O crescendo do caos (Foto: Época)

Rapidamente, antes mesmo que o Santander decidisse encerrar a exposição, já havia postagens em todo o país sobre a mostra. Como o Facebook tem restrições a alguns conteúdos publicados em suas páginas, o WhatsApp foi a plataforma mais utilizada para que grupos da sociedade civil se mobilizassem. Foi assim que o Movimento Brasil Livre, o MBL, entrou na história. No Facebook, a primeira postagem do grupo sobre o caso foi na tarde de domingo, quando a exposição já havia sido encerrada. Mas segundo Renan Santos, um dos fundadores do MBL, no WhatsApp a mobilização começou antes. Células do movimento em todo o país receberam avisos sobre a exposição e um foi repassando para o outro. Sem que nenhum membro do MBL visitasse a Queermuseu, eles decidiram espalhar o apelo pelo boicote ao banco. “Eu não preciso ir à exposição, poderia estar na Groenlândia e ser contra o pressuposto do uso de dinheiro público numa exposição que vilipendia imagens religiosas”, diz Santos. Agora, Diehl, que classifica o MBL como um grupo “socialista fabiano” – ou seja, de esquerda moderada –, reclama que o grupo “levou o crédito” que era seu por ter conseguido fechar a mostra. Um dos parceiros de Diehl na Direita ao Vivo, Caio Bellote, de Belo Horizonte, fez uma postagem com a notícia de que o secretário de Cultura da cidade, Juca Ferreira, queria levar a Queermuseu para lá: “Se isso for verdade, haverá aqui em BH uma resposta mais rápida e radical que em Porto Alegre. Estamos preparados para a guerra!”. A própria página Direito ao Vivo comentou que “se for para quebrar essa p... toda, nós vamos!!”.

As ameaças às obras e à integridade física de funcionários do Santander não se limitaram ao virtual. Fontes do banco afirmam que ao menos três diretores foram ameaçados de morte, por telefone e telegrama. Houve ao menos um caso de agressão física a um funcionário de agência em Porto Alegre. Alguns outros, por medo, entraram com mandado de segurança para não trabalhar. Dezenas de agências foram pichadas e apedrejadas em todo o país. Essas ameaças foram, segundo essas fontes, a razão da decisão de encerrar a exposição antes da data prevista, que seria no dia 8 de outubro. O Santander não confirma esses detalhes. A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul e o Ministério Público também não tinham informação de registro de boletim de ocorrência ou inquérito para investigar os casos. O curador da mostra, Gaudêncio Fidelis, questiona a versão de fontes do banco. Para ele, que presenciou a ação de Diehl e seus colegas na mostra, o encerramento da exposição aumentou a truculência dos grupos mais conservadores. “Havia a alternativa de aumentar a segurança e manter a exposição aberta. Eu passei a receber ameaças – e recebi mais de 100 – justamente depois que ela foi encerrada”, diz Fidelis. O promotor Julio Almeida, da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, também disse que passou a receber notificações sobre o conteúdo da exposição no domingo. Na segunda-feira, dia 11, o promotor visitou o Santander Cultural. “Não houve o crime de pedofilia”, diz o promotor. “Foi a primeira vez em 23 anos de Ministério Público que eu deparo com questionamentos sobre exposições em museu.”

Felipe Diehl disse a ÉPOCA que nunca incentivou ninguém a agredir nem agrediu ninguém. “Quem me conhece sabe. Quem se sentiu ofendido por mim tem direito de registrar boletim de ocorrência. Não concordo com agressão, com ameaça, nem com ovada. Nós ganhamos o Santander em rezas de terços e orações. Aí é que se concentra a luta. Mas como é que nós vamos trazer à tona? Dando a cara a tapa, indo lá, correndo risco de vida, de ser preso por alguma alegação falsa.” Diehl ainda admitiu que já foi segurança do próprio Santander e conhece o sistema de monitoramento do prédio e alguns vigilantes do local. “Eu jamais iria denegrir colegas. Não compactuo com agressões, ainda mais com gerente de banco, que não tem nada a ver. Isso aí vem lá de cima, do George Soros, que financia o Santander e é da pauta globalista, do establishment, da pauta esquerdista mundial.” Renan Santos, um dos fundadores do MBL, também negou que o movimento tenha tido conhecimento de agressões e ameaças. “Você tem de perguntar isso do lado de lá. A gente nem esteve in loco. Estamos há três anos na estrada e estamos sempre apanhando, somos vítimas de agressão sempre.”

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