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Marcus Faustini
Marcus Vinicius Faustini, pensador e agitador cultural da periferia Foto: Gustavo Pellizzon / Agencia O Globo

Helô e as tramas urbanas

Coleção de livros é uma das mais valiosas fontes para entender a cultura da periferia

A coleção Tramas Urbanas, Editora Aeroplano, criada por Heloisa Buarque de Hollanda, com cocuradoria de Ecio Salles e produção de Elisa Ventura, já se coloca como um das mais valiosas fontes para entender a cultura da periferia — marco importante da primeira década dos anos 2000. São mais de 30 livros, que traçam um panorama de histórias de projetos culturais, trajetórias de vida, autoficção, etnografias, inventários da cultura urbana, teses, pesquisas etc. Uma investida na produção literária e textual de novos autores que contribuiu de forma decisiva para esta cena.

Pensada originalmente para revelar e registrar novos autores de origem de periferia e ajudar a organizar por meio da literatura o pensamento daquele momento pulsante da cultura urbana brasileira, a coleção comporta mais dois elementos que a tornam importante. Parte desses autores, até então, eram figuras de papel secundário ou em ascensão dentro de seus projetos e no movimento cultural de suas cidades — o incentivo à publicação deu espaço para novas vozes que oxigenaram narrativas e apontaram sutilezas de histórias já reveladas. As tocantes histórias de Luciana Bezerra e sua relação com o Nós do Morro e de Anderson Quack e a Cufa são alguns desses exemplos.

Outro aspecto central é a capilaridade de autores e expressões culturais de várias partes do país — o que coloca a investida da Aeroplano como um dos pioneiros gestos concretos de reconhecimento e democratização do imaginário além do eixo sudeste. Tem livro sobre o projeto Bagunçaço da Bahia, outro sobre o Devotos de Pernambuco, e até sobre tecnobrega — na preciosa pesquisa de Oona Castro e Ronaldo Lemos. Nomes como Julio Ludemir, com seu livro “101 funks que você deve ouvir antes de morrer”, trazem brilho narrativo ao conjunto da obra. Sem falar da presença do saudoso Ericson Pires com seu “Cidade ocupada”, que amplia a dimensão da coleção. A investida de Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, criando um rap épico é uma pérola da coleção. Os paulistas Buzo e Sérgio Vaz, dois dos mais importantes nomes da militância da palavra como forma de ação, também estão presentes. Panfleto de Júnior Perim, mostra como a política fez parte da imaginação dessa geração. O início da presença de vozes marginais na literatura é a chave do livro de Érica Peçanha. E ainda: livros de Binho Cultura, Jéssica Balbino, Heraldo HB, DJ TR e muito outros nomes que até hoje estão na ativa.

Ecio gosta de contar que a ideia da coleção surgiu de uma provocação de Helô, que sugeriu a existência de vários "Ecios'' pelo país — ele, de origem popular, havia terminado sua pesquisa de mestrado sobre a criação de letras no hip-hop, que virou um dos livros da Tramas Urbanas. Era hora de reconhecer e instigar esses sujeitos criadores a investirem na palavra escrita — democratizando também este ambiente. É possível fazer download de grande parte da coleção.

Não menos importante que o narrado acima, nessa empreitada temos uma preciosa prova de um esforço pessoal do trabalho de uma intelectual. Da mesma forma que Heloisa foi figura importante no reconhecimento histórico e estético da geração da poesia marginal, seu nome está ligado a esse momento do que ficou conhecido como cultura da periferia. Antes mesmo da coleção ela já havia realizado o projeto Estética da Periferia, junto com Gringo Cardia, mostrando a potência estética de manifestações presentes no cotidiano das ruas e na capacidade de formulação presente na oralidade desses criadores.

A história da cultura brasileira possui nomes importantes que se dedicaram a interpretar sentidos, registros ou contradições de épocas e linguagens. Alguns com interpretações que marcaram o modo de entender um período. Helô Buarque, além de contribuir nesse sentido, é uma intelectual que age na vida. No brilho de seus 77 anos, contém uma energia e capacidade de leitura intelectual imprescindíveis. Recentemente encontrei com ela para uma conversa e mais uma vez tive a sensação de sempre: impossível não ficar empolgado com a vida perto dela. Helô continua se dedicando à Universidade das Quebradas, que coloca artistas de periferias com pesquisadores para pensar grandes temas da cultura como processo de troca formativa, e ao seu novo projeto de criação de um mapa do discurso das novas vozes femininas do país.

O sentido de uma geração não se dá apenas pela unidade e proximidade daqueles que estão envolvidos em algum projeto comum. Às vezes, o olhar de alguém que observa e junta elementos que estão soltos são centrais para este sentido. Uma das alegrias dessa vida é ter participado dessa coleção com o livro “Guia afetivo da periferia”. Ainda lembro do convite de Helô e Ecio. Ali começava um ponto de virada. Quanta coragem intelectual eles tiveram em convocar figuras até então fora da produção textual para começar essa jornada. Máximo respeito!

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