Um crítico feroz de si mesmo

Com 'A angústia da influência', Harold Bloom inventou um jeito novo de fazer crítica literária. Agora, 40 anos depois, diz que estava errado

LUÍS ANTÔNIO GIRON
15/11/2013 07h00
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OCUPADO Harold Bloom na sua casa em New Haven em 2011. Ele diz que A anatomia da influência é seu “canto do cisne”. Aos 83 anos, continua a escrever e a lecionar (Foto: Pascal Perich/Contour by Getty Images)

O americano Harold Bloom é o crítico literário mais importante do último meio século. Nos anos 1970, ficou famoso pelo ensaio A angústia da influência, livro que se tornou essencial para acadêmicos e para o leitor que se dispõe a conhecer o sofrimento dos poetas para se afirmar sobre seus antecessores. Os conceitos de Bloom se tornaram populares e passaram a ser usados em toda parte. Entre as expressões que seu ensaio divulgou, muitas se converteram em jargão: “desleitura”, “cânone ocidental” e “poetas fortes e fracos” são bons exemplos. A fama não fez com que Bloom se acomodasse. Continua a produzir “furiosamente”, como diz. Apesar de ter 83 anos e de estar aposentado como professor emérito da Universidade Yale. Bloom interrompeu seu trabalho para falar a ÉPOCA, por telefone, na semana passada, de seu apartamento em New Haven, Connecticut – onde mora com Jeanne Gould, com quem é casado há 54 anos –, sobre seu livro mais recente, A anatomia da influência – Literatura como modo de vida (Objetiva, 460 páginas, R$ 49,90), publicado em inglês em 2011 e agora no Brasil. O livro retoma e reformula os conceitos de A angústia da influência

“Temos de ser breves, meu caro”, diz Bloom com voz aguda, rouca e cansada. “Tenho pressa em terminar minha obra e preciso voltar ao meu trabalho.” Ele parece se irritar facilmente, mas logo se recupera. A rabugice inicial deriva para uma conversa amena. Diz que estava cansado de ser citado, diluído e interpretado erroneamente por causa de seu estudo mais célebre. Em A anatomia da influência, quer dar a palavra final sobre o assunto. Afirma ser seu “canto do cisne” teórico. “Na verdade, não é uma revisão, mas uma alteração de perspectiva em relação a minha reflexão de 40 anos atrás”, diz.

Publicado em janeiro de 1973, A angústia da influência é uma tentativa de explicar a influência entre poetas como algo fora da história e da ideologia. Cada poeta, forte ou fraco, diz, vale-se de uma maneira pessoal e inconfessável de assimilar seus antepassados poéticos. “Até hoje, dizem que minha teoria é derivada do complexo de Édipo de Freud, pois os poetas combatem a imagem do pai”, afirma. “Não tenho influência de Freud, nem naquele tempo nem agora. Os poetas para mim são pré-freudianos. Se eles têm algum complexo, é o complexo de Hamlet. Pois, como o Hamlet de Shakespeare, querem concorrer com a imagem do pai.” Bloom reitera sua paixão mística por William Shakespeare, para ele o Homero moderno que exerce fascínio sobre toda a posteridade de poetas, romancistas e filósofos. “Shakespeare é o inventor da noção de humanidade, o criador de textos e personagens mais vivos e inteligentes que muitos seres humanos”, afirma. Shakespeare é, diz ele, a origem de todas as influências da posteridade.

>> Leia o primeiro capítulo de A anatomia da influência

A anatomia da influência  (Foto: Divulgação)

“Hoje, eu daria ao meu primeiro ensaio um título parecido com a tradução em português: ‘A angústia da contaminação’. O termo ‘ansiedade’ é fraco para expressar o ímpeto dos poetas que querem se impor sozinhos, apesar de sentir a influência dos demais. É a inveja criativa que leva o poeta a emular o antecessor. Penso em Fernando Pessoa, influenciado por Luís de Camões e Walt Whitman. Ele sofria com isso, mas conseguiu impor sua genialidade.”

O problema de sua velha teoria, diz, era assumir que os poetas faziam concorrência acirrada uns aos outros: “Ora, naquele tempo de paz e amor, era uma visão agressiva. Muita gente rejeitou a atitude ‘agonística’, como digo, de que os poetas lutavam pelo primeiro lugar. Hoje, é o contrário. Pensadores como meu amigo Paul de Man, Michel Foucault e Pierre Bourdieu exacerbaram o caráter de estratégia e combate e pintaram cinicamente um panorama de guerra total entre os escritores”.

Em A anatomia da influência, Bloom fornece uma visão mais sutil da luta poética. “Minha visão de influência se alterou. Defino-a agora como o amor literário”, diz. “O amor é a grande influência. Mas um amor que os poetas usam de maneiras diversas, para se defender da força dos poetas antecessores. O amor é uma força necessária para compreender o funcionamento da alta literatura.” Ele aborda as obras de Shakespeare, Whitman e Giacomo Leopardi, percorrendo os vários tipos de relação literária. “É preciso entender que a influência se dá entre poemas, não entre indivíduos. A arena do combate de angústia e amor é a linguagem.” Bloom diz que fez outra descoberta tardia: “A influência não é um fenômeno apenas literário. É universal. Acontece em todas as instâncias humanas”. Até mesmo os críticos precisam enfrentar as influências. “Escrevo para me livrar do peso que as grandes obras exerceram sobre mim”, afirma.


Bloom discorre sobre muitos assuntos além de sua obra: como o prejuízo que a literatura de massa de Stephen King e J.K. Rowling causa aos leitores. “Eles degradam a sensibilidade dos leitores. São péssimos”, afirma. A era digital, que ele chama de Era da Desinformação, também lhe desagrada. “Os livros deixarão de ser publicados em 20 ou no máximo 30 anos”, diz. “Não leio e-books. Prefiro sentir o livro, seu toque e seu cheiro e enchê-lo de anotações de leituras. Não há prazer igual.” Mesmo assim, escreve no computador e responde a e-mails do mundo inteiro. “As pessoas lamentam a degradação do humanismo”, diz. “Fico triste quando leio que uma universidade como Stanford esteja com problemas para formar alunos de humanidades, porque ninguém se interessa por literatura e sabedoria. A humanidade se desumaniza.”

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Bloom lutou a vida inteira contra o pensamento tecnocrático e a especialização dos estudos literários, marcados pela visão de gênero, sexualidade e política. “Minha missão foi salvar a poesia da interpretação ideológica, que reduz a obra de arte a uma ferramenta”, diz. “A poesia é feita de figuras de linguagem, não é exemplo de crenças políticas.” Ele explica por que defende a crítica pessoal e passional. “Só assim chegamos a ler com profundidade uma obra de arte. O exercício da crítica – ler, avaliar, selecionar, interpretar – deve resultar numa meditação sobre a vida.”

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O cânone da crítica segundo Bloom (Foto: Getty Images/AFP)

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