Por Gabriela Gonçalves, Renata Matarazzo, G1 SP


O termo "ideologia de gênero" surgiu entre meados da década de 1990 e início dos anos 2000 no âmbito do Conselho Pontifício para a Família, da Congregação para a Doutrina da Fé, antigamente conhecida como Santa Inquisição Romana e Universal, ala conservadora da Igreja Católica, segundo o Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da Universidade de Brasília (UnB).

Nesta terça-feira (3), o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mandou recolher o material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual de São Paulo. A apostila explica os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também traz orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. O governador justificou por que tomou a decisão: "Não concordamos nem aceitamos apologia à ideologia de gênero". O governo do presidente Jair Bolsonaro também tem posição crítica ao que classifica como "ideologia de gênero".

O termo foi formulado como uma reação ao feminismo por grupos neofundamentalistas católicos, segundo os quais a luta feminista atinge a tradicional família cristã. Mas, de acordo com a UnB, o termo contraria, inclusive, disposições do Concílio Vaticano II, quando vários temas da Igreja Católica foram regulamentados na década de 1960.

Depois, em 2000, a expressão aparece em documento da Cúria Romana, com a publicação de “Família, Matrimônio e Uniões de fato”.

Expressão não reconhecida

A expressão "ideologia de gênero" não é reconhecida no mundo acadêmico e é usada por grupos conservadores, como as igrejas evangélicas, contrários aos estudos de gênero iniciados nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos e na Europa --que teorizam a diferença entre o sexo biológico e o gênero.

Para esses estudiosos, ser um homem ou uma mulher não depende apenas da genitália ou dos cromossomos, mas de padrões culturais e comportamentais. Tais padrões, segundo os teóricos da área, são adquiridos na vida em sociedade. Já grupos de conservadores acreditam que as conclusões desses estudos sobre o gênero não obtiveram validação das ciências exatas e biológicas.

Em 1994, o conceito de gênero foi adotado, pela primeira vez, em documento intergovernamental na Conferência de População do Cairo, na Assembleia Geral da ONU de 1994.

Em 2004, no Brasil, surgiu o movimento "Escola sem Partido" para combater uma suposta doutrinação de esquerda que os professores praticariam nas escolas.

Em abril de 2017, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU enviou uma carta à embaixadora do Brasil na ONU, citando a exclusão do termo “orientação sexual” do currículo escolar após “membros do grupo Escola Sem Partido terem acusado professores de encorajar alunos a entrar em contato com sua natureza homossexual”.

A carta lembra que o Comitê de Direitos da Criança recomendou, em 2015, que o Brasil “fortalecesse seus esforços para combater a discriminação e a estigmatização de crianças vivendo em situação de pobreza em áreas urbanas marginalizadas, como favelas, além de crianças em situação de rua, meninas, e crianças negras e indígenas. ”

O Comitê também recomendou a criação de leis proibindo a discriminação e o incitamento da violência com base na orientação sexual e identidade de gênero.

Especialistas: termo não existe na base da educação

Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação, afirma que o termo “ideologia de gênero” não existe na base da educação brasileira, mas sim, a discussão do tema.

“É importante diferenciar, porque tem um grupo que rotula. Isso é um rótulo de grupo.” Ela explica que a discussão visa debater a construção de identidade e que um grupo de pessoas é a favor e outro é contra abordar isso nas escolas.

“Existem as pessoas que acham que essa discussão deve ser suprimida para além do sexo biológico, esse tipo de discussão não poderia acontecer na escola. [Elas entendem] ideologia como sendo uma palavra pejorativa e discutir gênero é algo ideológico, posição ideológica e, portanto, deve estar fora da escola", disse.

Ela prossegue: "E tem aqueles que defendem que esse debate deve ser tido na escola que a escola não pode ser hermética nesse debate e que esse debate deve ser saudável, sem doutrinação. Nenhum educador pode impor a sua visão particular de mundo para os alunos, mas os assuntos precisam ter espaço para serem debatidos na escola, porque a construção da identidade é algo que faz parte da vida“.

Segundo Cruz, estudos apontam que o bullying no Brasil é mais intenso do que em outros países e que isso tem a ver com a “construção cultural e identitária que as crianças e jovens estão se desenvolvendo”.

“ A escola precisa tratar isso de forma natural para minimizar o preconceito, minimizar a intolerância e criar espaço de diálogo, de se entender e entender o outro", diz.

A professora FGV Cláudia Costin e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE) reforça que o termo não tem base científica. “Ideologia de gênero não existe. Seria uma ideia de que escolas estariam tentando transformar as pessoas em gays. As pessoas não viram gays", afirma.

Segundo Costin, a Base Nacional Comum Curricular do MEC não menciona a identidade de gênero, mas também não a proíbe.

"Ao traduzir a base em currículos estaduais, os currículos podem ou não introduzir uma questão sobre isso, o que não impede que professores ou até escolas abordem o tema", afirma.

“A base estabelece aprendizagens mínimas que todos os alunos brasileiros tem que ter na educação básica", completa.

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