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Dia Internacional da Mulher 2021: em ano de aumento da violência contra mulher, Damares usa apenas 1/4 do orçamento, o menor gasto da década

Levantamento feito pela reportagem de CELINA em colaboração com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que nem mesmo recursos extraordinários liberados em função da pandemia mudaram o panorama
Levantamento mostra que a pasta comandada por Damares Alves só pagou 24,6% do total de R$ 120,8 milhões autorizados pelo Congresso para proteção à mulher em 2020 Foto: Arte sobre foto de Jorge William / Agência O Globo
Levantamento mostra que a pasta comandada por Damares Alves só pagou 24,6% do total de R$ 120,8 milhões autorizados pelo Congresso para proteção à mulher em 2020 Foto: Arte sobre foto de Jorge William / Agência O Globo

RIO e BRASÍLIA - No ano em que o país registrou uma denúncia de violência contra a mulher a cada cinco minutos, o gasto com ações de proteção à mulher feito pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) em 2020 foi o menor dos últimos dez anos. Levantamento feito pela reportagem de Celina em colaboração com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que a pasta comandada por Damares Alves só pagou 24,6% do total de R$ 120,8 milhões autorizados pelo Congresso para este fim em 2020. No ano em que a pandemia contribuiu para aumentar os casos de violência contra a mulher , a execução financeira para a área somou apenas R$ 35,5 milhões.

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Os dados foram obtidos por meio do Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público federal mantido pelo Senado, analisados usando o conceito de execução financeira,  que corresponde ao valor efetivamente pago somado aos restos a pagar de anos anteriores quitados no ano em análise. Desta forma, foi possível identificar quanto de fato chegou no serviço na ponta, onde a mulher é atendida.

Do orçamento de R$ 120,8 milhões autorizado pelo Congresso em 2020, o MMFDH empenhou R$ 117,7 milhões para ações de combate à violência contra a mulher , o maior valor desde 2015. Mas pagou apenas R$ 29,7 milhões, somados a R$ 5,8 milhões de restos a pagar de anos anteriores.

Questionado pela reportagem, o MMFDH informou, via assessoria de imprensa, que executa a maior parte das políticas públicas por meio de convênios, termos de execução descentralizada, fomento e colaboração, com parceiros nas esferas pública e privada. "Uma vez formalizados os instrumentos de parceria, a execução dos objetos pactuados depende da expertise do parceiro escolhido”, disse a pasta. "Assim, ocorre uma diferença entre o valor empenhado e o valor pago. Os valores não pagos em um exercício são inscritos em 'Restos a Pagar', sendo transferidos para um ou mais exercícios seguintes."

Quando o governo empenha um valor, ele apenas faz uma reserva, assina um contrato. Mas, na prática, enquanto não é pago, o recurso ainda não chegou ao seu destino para permitir que a política pública funcione. O valor empenhado pode ser quitado ao longo dos anos seguintes ou até mesmo não ser pago, caso haja quebra de contrato pela outra parte.

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— O governo considera empenho como despesa executada. Do lado de quem recebe ou monitora, a gente faz uma leitura crítica porque era um recurso que poderia ser gasto no ano, mas só vai chegar na ponta nos anos seguintes — explica Carmela Zigoni, assessora política do Inesc. — Qualquer dinheiro não executado naquele ano significa que, na ponta, aquela mulher não acessou um serviço.

Gasto caiu dois terços

A execução financeira para ações de combate à violência contra a mulher variou entre R$ 80 milhões e R$ 105 milhões nos três primeiros anos da década. Em 2014, ainda no governo de Dilma Rousseff, atingiu o maior patamar do período, somando R$ 193,3 milhões. Em 2017, primeiro ano inteiro sob o comando do presidente Michel Temer, o gasto foi de R$ 66,8 milhões. Em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, a execução financeira para área somou R$ 47,8 milhões, caindo 26% em 2020, para R$ 35,5 milhões.

Entram nessa conta os programas orçamentários específicos para mulheres de 2011 a 2019. Em 2020, com o novo plano plurianual (PPA), o programa ‘Políticas para as Mulheres, Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência’ passou a se chamar ‘Proteção à Vida, Fortalecimento da Família e Defesa dos Direitos Humanos para Todos’ e se tornou mais abrangente. Com auxílio do Inesc, foram selecionadas as ações específicas para mulheres dentro dele.

Principal iniciativa da área, a Casa da Mulher Brasileira recebeu apenas  R$ 67,8 mil do Ministério da Mulher, Família e Diretos Humanos (MMFDH) em 2020, embora a pasta comandada por Damares Alves tivesse R$ 65,4 milhões disponíveis para essa ação. Em 2019, nada foi gasto com a iniciativa que tem como objetivo reunir num mesmo lugar todos os serviços necessários para o acolhimento da mulher em situação de violência, com atendimento psicossocial, jurídico e abrigo para as vítimas e seus filhos. Hoje o país tem apenas seis casas em funcionamento, e uma desativada. No início de 2020, Damares chegou a prometer a construção de 25 novas unidades até o fim do mandato, mas nenhuma saiu do papel no ano passado. Em fevereiro a promessa foi renovada para 27 casas até o fim deste ano.

Do que foi pago em 2020, desconsiderando os restos a pagar, 75% foram para o Disque 180 , a Central de Atendimento à Mulher. Outros 15% foram destinados à compra de alimentos para doação e, dos 10% restantes, a maior parte foi distribuído para municípios do Mato Grosso do Sul. Quantias menores foram para instituições de ensino, ONGs e para a Casa da Mulher Brasileira. Nada foi pago para o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

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O reforço na divulgação do canal de atendimento foi a principal medida do governo para combater a violência doméstica que se agravou durante a pandemia — os feminicídios subiram 2% no primeiro semestre de 2020, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No ano passado, as denúncias passaram a ser recebidas também por aplicativo, WhatsApp e Telegram, mas nenhum valor adicional foi direcionado para o serviço.

Pandemia não muda o quadro

Nem mesmo os créditos extraordinários liberados devido à crise sanitária mudaram o panorama em 2020. De acordo com dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação, dos R$ 45 milhões recebidos pelo MMFDH via Medida Provisória 942/20,  apenas R$ 8,2 milhões (18%) foram destinados para ações específicas para mulheres: distribuição de alimentos e uma campanha de conscientização.

Também não foram identificados gastos para o programa Salve uma Mulher, lançado em outubro de 2019 com o intuito de capacitar funcionários de estabelecimentos públicos e privados para identificar e auxiliar mulheres em situação de violência. A promessa era de treinar 476 mil pessoas na primeira etapa do projeto, e 2 milhões em dez meses. A reportagem solicitou informações ao ministério via assessoria de imprensa, mas não teve resposta.

Organismos internacionais como a ONU Mulheres e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) fizeram alertas sobre o impacto da crise sanitária na violência doméstica . Isso porque a pandemia potencializa fatores de risco. Se por um lado,  houve interrupção ou redução da oferta de serviços presenciais das redes de segurança pública e saúde, por outro lado, houve um aumento da convivência em casa, o que pode tornar mais frequentes episódios de violência em um contexto de crise financeira.

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Ao redor do mundo, governos adotaram diversas medidas para enfrentar o problema. França, Espanha e Itália, por exemplo, transformaram quartos de hotéis em abrigos temporários. Na Argentina, foram criados centros de aconselhamento em supermercados e farmácias para que as vítimas pudessem fazer a denúncia sem retaliações do agressor. Assim como aconteceu com as medidas de isolamento social, no Brasil, estados e municípios implementaram suas próprias medidas extraordinárias . Em São Paulo e no Rio de Janeiro, foram criados o boletim de ocorrência e o pedido de medida protetiva online.

O recrudescimento da violência foi visto nos números. Ao longo de todo o ano passado, o Brasil somou 105.671 denúncias de violência contra a mulher , sendo 72% referentes à violência doméstica e intrafamiliar. Foram quase 290 denúncias por dia ou uma a cada cinco minutos, segundo os números do Ligue 180 e do Disque 100, canais de atendimento mantidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, divulgados ontem (7). A maioria das denúncias tem como vítimas mulheres declaradas como de cor parda, de 35 a 39 anos.

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— A partir do que estava acontecendo em outros países e mesmo tendo mais tempo para se planejar, o governo não tomou nenhuma medida especial de proteção às mulheres — afirma Nalida Coelho Monte, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Dados não batem

Em coletiva na véspera do Dia da Mulher, Damares afirmou que a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) executou o maior orçamento para área dos últimos cinco anos. Segundo dados publicados no site do próprio ministério, "foram R$ 123 milhões em ações o enfrentamento à violência e capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade social" e o valor representa "98% do orçamento autorizado para o exercício."

Dados da própria SPM obtidos via LAI pela reportagem mostram um cenário diferente. Na verdade, foram R$ 123 milhões autorizados para SPM em 2020, de fato o maior desde 2015, mas graças a emendas feitas pelos parlamentares. A dotação inicial prevista para a secretaria pelo governo federal foi de apenas R$ 2,7 milhões, também a menor em dez anos. Do total autorizado, foram empenhados R$ 86 milhões, ou 70%, e só R$ 7,3 mi foram efetivamente pagos.

A reportagem optou por não utilizar os dados exclusivos da SPM para análise principal porque algumas ações de proteção à mulher não ficam sob o guarda-chuva do órgão, como o próprio Disque 180, que desde a unificação com o Disque 100, fica centralizado na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.

Orçamento 2021

Embora a crise sanitária continue em 2021, a postura do governo segue a mesma. Na proposta de orçamento enviada pelo Executivo ao Congresso os recursos específicos para enfrentamento à violência contra mulher estão zerados e apenas R$ 1,06 milhão está previsto para Casa da Mulher Brasileira, além de R$ 28,6 mil como eventuais créditos extraordinários.

Os valores finais ainda estão em negociação e serão mais altos. Nos últimos dois anos, tem ficado a cargo do Congresso a destinação de boa parte dos recursos para proteção à mulher. O aumento de R$ 65,3 milhões liberados em 2019 para R$ 120,8 milhões em 2020 foi feito pelos parlamentares.

Para 2021, a casa já adicionou R$ 18,9 milhões em emendas para defesa da mulher, sendo R$ 15,9 milhões impositivas — quando o gasto é obrigatório. A previsão é de que o Congresso conclua a votação do orçamento em 24 de março. Até lá, o governo só pode gastar 1/12 do previsto por mês. Até 4 de março, foram pagos apenas R$ 120 mil para ações específicas de enfrentamento à violência contra as mulheres e nada gasto na Casa da Mulher Brasileira. (Colaborou Raphaela Ramos)