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Política

Prisões têm taxa de homicídios maior do que o Brasil

Taxa dessas mortes nas cadeias é de 48,32 por 100 mil presos. No país é de 31,6 por 100 mil habitantes
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BRASIL — No Brasil não há pena de morte. Porém, quando o território está limitado aos muros de uma unidade prisional , a realidade é outra. O ex-detento Robson Gomes, que cumpriu  parte de sua pena na unidade de Ary Franco, em Água Santa, na Zona Norte da capital fluminense, acompanhou a morte, por sentença, de um colega de cela condenado por envolvimento com uma facção rival. O caso aconteceu nos anos 1990, mas a regra existe até hoje. A violência praticada nas unidades prisionais está, na maior parte das vezes, ligada à atuação das facções criminosas, o que torna as mais de 2.600 cadeias do país o território mais perigoso.

No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.
No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.

Dados comparativos de junho de 2017 do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional revelam que a taxa de homicídios entre presos é de 48,32 por cem mil habitantes. Foram 351 homicídios entre janeiro e junho de 2017, para uma população carcerária de 726.354 presos no mesmo período (hoje são 831 mil presos). A taxa nacional de homicídios, no entanto, é bem menor: 31,6 por cem mil habitantes. E o Brasil tem o segundo maior indicador de violência da América do Sul, perdendo apenas para a Venezuela.

Especial: Violência encarcerada

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública listou a presença de 31 facções criminosas nos presídios. A maior, nascida em São Paulo, teria cerca de 36 mil membros. A mais antiga delas, surgida no Rio de Janeiro, tem 20.500 faccionados entre os 53 mil presos do território fluminense.  Fenômeno mais recente de violência, as milícias também já têm o seu ponto de domínio nas cadeias.

Especial Violência encarcerada - Compaj Foto: Renne Rocha / Agência O Globo
Especial Violência encarcerada - Compaj Foto: Renne Rocha / Agência O Globo

— Os dados de segurança pública apontam que a milícia é uma nova facção criminosa. Se no passado, ela veio como uma organização paramilitar, hoje grande parte da milícia são pessoas que saíram de facções de tráfico de drogas. Então hoje já se tem no sistema prisional unidade específica para milicianos — afirma o juiz  Rafael Estrela, titular da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro.

Estrela confirma que, na distribuição dos presos nas cadeias, as organizações criminosas são levadas em consideração:

— O preso primeiro é separado por regime, o regime fechado, o semiaberto e o aberto. Uma vez classificado pelo regime, ele é separado em unidades de facção se ele se declara faccionado.

Memória: Como surgiu na Ilha Grande o modelo que se espalhou em dezenas de grupos criminosos

São estes grupos que, também fora dos presídios, comandam o tráfico, os assaltos a bancos e a empresas transportadoras de cargas e também o extermínio no país.

— O combustível dessas facções é a massa carcerária, a massa de jovens na periferia sem opções de trabalho, sem perspectiva de educação e trabalho formal. Mais que nada é a massa carcerária — analisa  Benjamin Lessing, cientista político da Universidade de Chicago que pesquisa facções criminosas na América Latina e nos EUA.

“As facções existem hoje por culpa do estado que amontoou pessoas dentro de prisões. As prisões no Brasil se transformaram em depósitos”

Ronnie Frank
Juiz da Vara de Execuções Penais

Juiz da Vara de Execuções Penais do Estado do Amazonas, onde uma briga entre integrantes da mesma facção deu origem a um rebelião em maio passado que se espalhou por outras unidades e deixou 55 mortos em presídios, o juiz Ronnie Frank defende o fim da separação de presos por facção.

— O risco (de homicídios) sempre existirá, mas acho que o pior é o que estamos fazendo, alimentando ainda mais, fortalecendo o vínculo entre eles, quando separamos as facções por alas. As facções existem hoje por culpa do estado que amontoou pessoas dentro de prisões. As prisões no Brasil se transformaram em prisões depósitos,  não são prisões com a finalidade estabelecida em lei para recuperar e ressocializar.

Guerra: A luta entre a Okaida e os Estados Unidos na Paraíba

Fazer ou não parte de uma organização criminosa é decisivo no tipo de vida que um preso levará na cadeia. Detentos ligados a facções, em geral, têm mais status, proteção e privilégios. Na prática da rotina carcerária, significa ter uma cama para dormir, comer uma comida melhor e até mesmo conseguir uma companheira — muitas vezes, as facções conseguem mulheres para visitar os detentos desacompanhados.

Adams Johnny Campelo, de 34 anos, está preso na Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo
Adams Johnny Campelo, de 34 anos, está preso na Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo

Integrante da facção paulista, Adams Johnny Campelo, de 34 anos, está preso na Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, mais conhecida como PB1, em João Pessoa, na Paraíba. Ele conta como é a chegada de um faccionado ao sistema:

— Primeiro você fica cinco dias no que chamamos de reconhecimento. Ali, os presos de diferentes pavilhões te fazem perguntas de praxe: o vulgo (apelido no crime) , sua quebrada. Se não der para morar num, porque algum preso vai cobrar alguma coisa lá de fora, tem de ir para outro pavilhão. O sistema carcerário está tão dominado pelas facções que ou você mora de um lado, ou mora de outro. Da facção, temos ajuda jurídica, financeira e apoio moral —  diz.

Condenado por um assalto a banco, Campelo diz ter optado pela facção paulista pelo seu "rigoroso código de ética do crime". Presos faccionados têm benefícios, mas também devem obedecer regras. Apesar de distante do local de origem, as condutas adotadas pelo grupo paulista em terras estrangeiras são as mesmas.

Adams Johnny Campelo explicou como é a vida de um integrante de facção na cadeia Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo
Adams Johnny Campelo explicou como é a vida de um integrante de facção na cadeia Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo

— Dentro da cultura carcerária, aprendemos que dívida se paga. Antigamente, pessoas eram mortas por dever uma carteira de cigarro. Aprendemos que não pode extorquir, expulsar famílias de casas. A gente é proibido de fazer baderna, de discutir com o agente penitenciário. A gente segue rigorosamente o estatuto, temos regras e hierarquia. No nosso pavilhão, não tem briga, não tem morte — afirma.

Preso na mesma penitenciária de segurança máxima, o detento Danúbio da Silva, de 34 anos, optou por morar no chamado "seguro" — a ala destinado aos estupradores, homossexuais e não faccionados que, em geral, correm risco de morrer. Se para os membros de facção a rotina no presídio é de mais privilégios, para os neutros a vida é mais isolada e difícil.

—  A gente fica sempre quieto, não se envolve em patota, em grupos. E vive com medo, né? A diferença é que eles se comunicam muito. Já a gente não tem aquelas informações que eles têm. Ficamos escanteteados, afastados. A gente até fala com eles normal, joga bola com eles. Mas qualquer segredo, eles não passam. Quando a gente chega, eles saem de perto — conta Silva.

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Acusado de ter cometido dois homicídios, Silva lembra que, quando estava na rua, foi convidado mais de uma vez para entrar na facção. Não aceitou por considerar ser "um caminho sem volta", que pode levar à morte. Segundo ele, muitos presos do "seguro" acabam cedendo ao assédio dessas organizações em troca dos benefícios:

— Os chefes da facção conseguem um gás, uma namorada dentro da cadeia, uma feira para a família. Por isso alguns partem para esse lado. Outros já entram na rua por causa da droga, porque lá fora eles dão uma boca de fumo, um bico.

Violência encarcerada Foto: Renne Rocha / Agência O Globo
Violência encarcerada Foto: Renne Rocha / Agência O Globo

A promotora do Ministério Público do Amazonas, Christianne Corrêa, defende que a divisão de presídios por facções além de empoderar as quadrilhas, torna reféns as famílias de presos mais pobres.

—  Nós tínhamos, por exemplo, situações de um familiar relatar informalmente: "deixo de ter comida na minha casa para poder levar para o meu parente que tá preso senão ele vai apanhar". Já ouvimos de internos: "eu recebo a minha comida que a minha família traz e eu tenho que repassar porque senão eu vou sofrer consequências dentro da unidade prisional". Então esse empoderamento é muito negativo. Neste ponto o estado via o que acontecia.

Se autoridades discordam se presos presos devem continuar divididos ou não por territórios, quem passa pelo sistema sabe o custo de chegar à unidade errada. Robson Gomes foi obrigado a explicar a seu colega de cela porque morreria:

—  Foi meio que uma decisão de um poder informal,  por conta de uma ação deste corpo que estava ali, não sei se por ingenuidade ou por achar que passaria batido, por um ato que ele cometeu fora dali. A informação chegou e foi de cima para baixo, veio uma ordem de que aquele corpo tinha que ser parado ali, não podia nem deixar ele ir embora. Então foi a decisão sobre uma vida que eu conheci no sistema, que eu me relacionei com ela, que eu convivi. Ele estava ali também recluso, era um assaltante, que eu não sabia abertamente como tinha sido a vida dele fora, mas ele sabia. E outras pessoas também sabiam, então ele foi sentenciado à morte dentro de uma cadeia, por ele ter feito assalto com pessoas  de outras facções — contou Robson. —  Num quadrado fechado de concreto com a janelinha, com uma grade desta grossura que você não consegue passar pela greta, não dá nem para fazer vergonha, é melhor morrer como homem.

“Facção criminal não se mantém existindo só em presídio, isto é bobagem. Se a facção terminar em todos os locais da sociedade dita livre, automaticamente termina aqui dentro”

Alexandre Azevedo
Secretário de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro

O estado do Rio de Janeiro foi o primeiro da federação a ter uma facção criminosa dentro de presídio. Hoje são pelo menos cinco. No entanto, a última grande rebelião ocorreu em 2004, e levou à criação do primeiro Grupo de Intervenção Tática, que atua dentro das unidades para controlar e até prevenir grandes conflitos.

— Todo mundo reputa que a facção criminosa só passou a existir depois do evento da Cândido Mendes, na Ilha Grande. Isto não é totalmente verdadeiro. Pode-se dizer que a partir dali, a facção criminosa, como atua hoje, como um fenômeno que atinge o Brasil inteiro, ela começou a se alicerçar desta forma, mas já existia antes, você tinha várias falanges — analisa o secretário estadual de Administração Penitenciária do Rio, coronel PM Alexandre Azevedo.

Para ele, as facções dentro das unidades só terão fim quando seus domínios acabarem para fora dos muros:

— Tenho que entender também que facção criminal não se mantém existindo só em presídio, isto é bobagem, isto é falácia. Tanto que, se a facção criminal terminar em todos os locais da sociedade dita livre, automaticamente ela termina aqui dentro. Porque você tem o faccionado por região, ele se diz parte de uma facção criminosa mais porque ele nasceu no território, quem dita na verdade esta pseudo opção, esta não opção ou esta declaração imposta é o local de moradia, é o território.