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Política

A luta entre a Okaida e os Estados Unidos na Paraíba

Facções se inspiraram na histórica rivalidade entre o grupo fundamentalista e o país de Trump para criarem seus nomes
Dois grupos inimigos se apropriaram dos nomes do grupo terrorista e do país para rivalizaram Foto: Arte
Dois grupos inimigos se apropriaram dos nomes do grupo terrorista e do país para rivalizaram Foto: Arte

BRASIL - Fogos de artifício e tiros de revólver iluminaram o céu dos bairros da periferia de João Pessoa em agosto do ano passado. Eram integrantes de uma facção local comemorando mais um aniversário. Num dos vídeos da celebração, que se alastraram pela internet, um homem gritava: "Aqui é Okaida RB, p…. Não passa nada". Demonstrações de força da organização criminosa hegemônica na Paraíba estão por toda parte. Nos muros das comunidades da capital e do interior, inscrições quase sempre acompanhadas de um adorno deixam claras as regras do bando: "respeitar os moradores, não usar drogas na frente das crianças, não cabuetar (sic), ser coletivo e não roubar nas imediações". Numa das favelas visitadas pelo GLOBO, a orientação é direcionada aos motoristas de aplicativos: se você é Uber, pare aqui, baixe o vidro e acenda o farol. A intenção é se certificar de que não há inimigos dentro do carro.

No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.
No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.

Na Paraíba, as pitorescas Okaida e Estados Unidos disputam o mercado ilegal de venda de drogas e armas. As facções se apropriaram da histórica rivalidade entre o grupo de fundamentalistas islâmicos e o país americano. Wagner Falcão, presidente da Associação dos Agentes Penitenciários do Estado (Agepen), conta que os grupos surgiram depois de uma briga dentro do sistema prisional em meados de 2007.

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- Naquele tempo, o estado não tinha o controle. Um grupo de presos jogou uma granada na cela dos rivais e gritou: 'nóis (sic) é terrorista'. Como os terroristas em evidência na época eram da Al Qaeda, eles colocaram Okaida. Não sabiam nem falar o nome direito. Aí pegou. Os presos que não concordavam começaram a ser expulsos para o seguro (ala da cadeia para onde vão estupradores, homossexuais, devedores de pensão alimentícia e feminicidas) . Esse grupo de excluídos pensou: já que eles são Okaida, então nós somos Estados Unidos - lembra Falcão.

Integrantes da facção Okaida postam vídeo em rede social Foto: reprodução / Agência O Globo
Integrantes da facção Okaida postam vídeo em rede social Foto: reprodução / Agência O Globo

A Okaida começou pequena, mais como uma gangue de bairro voltada para assaltos e tráfico de pequenas quantias de drogas do que como uma facção estruturada. Foi se organizando ao longo dos anos. Relatório da Operação Gerônimo, da Polícia Federal, mostra que em 2017 a facção já tinha estrutura semelhante à organização criminosa paulista, com estatuto e setores: o "palavra final", composto pelos chefes; "conselho ou torre", formado por dez membros, responsáveis por decidir de rebeliões em presídios até o assassinato de rivais; "integrantes", a massa de membros; e "associados", espécie de parceiros no crime.

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Agora em sua quarta geração, a facção troca de nome conforme muda de líderes - já chamou Okaida, Okaida RB, Nova Okaida… Estima-se que esteja presente em 90% da Paraíba. Pelo elevado número de integrantes e extenso domínio territorial, em comparação a outras menores, não permite que organizações de fora e com amplo alcance nacional se estabeleçam no Estado.

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- Com a faccionalização, os pequenos grupos de rua começam a fazer parte de uma estrutura maior, controlada dos presídios. Às vezes, na cidade, tem quatro ou cinco facções. Mas, nos bairros, tem uma só. Essa pacificação nos bairros traz benefícios enormes para a população local. Antes era difícil de ir e vir. Agora não. E ainda tem controle social sobre furtos, roubos, estupros, mortes. O Estado também tem seu papel. E as políticas do Estado funcionam melhor quando as facções estão em paz - explica o cientista político americano Benjamin Lessing , professor da Universidade de Chicago (EUA).

Bairro de São José, em João Pessoa, é controlado por uma das facções criminosas Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo
Bairro de São José, em João Pessoa, é controlado por uma das facções criminosas Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo

Essa hegemonia do crime, associada a políticas de segurança, tem resultado imediato nas ruas. A Paraíba investe na capacitação dos agentes penitenciários e na criação de novas vagas, a fim de reduzir a superlotação, para aumentar o controle de seus presídios. O tenente-coronel Sérgio Fonseca, secretário de Administração Penitenciária da Paraíba, estima que 50% dos agentes tenham ensino superior. O estado tem uma média de um agente para sete presos. Apesar de não ser o ideal, é um número acima de locais como Manaus, onde o índice é de um concursado para cada 26 detentos.

- A receita para o controle é investir no sistema prisional. E o presídio bem controlado traz um bem muito grande para a sociedade - afirma Fonseca.

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Crimes em queda

Vizinha dos violentos Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco, a Paraíba é uma espécie de oásis da pacificação. O estado diminui há sete anos o número de crimes violentos letais intencionais. Saiu de 1.542 casos, em 2012, para 1.212, no ano passado - redução de 21,5%, segundo a Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social. Na comunidade São José, um dos bairros periféricos mais populosos da capital João Pessoa, com cerca de 14 mil moradores, cruzar com um corpo estirado na calçada era corriqueiro até cerca de quatro anos atrás. Mas não mais.

Paulo Alves, presidente da associação de moradores do bairro, conta que, antes da chegada da Okaida e suas regras, havia cerca de 30 homicídios por ano ali. Hoje esse índice praticamente zerou. Em contrapartida, a facção pune aqueles que desobedecem suas leis. Chamam atenção, torturam, chegam a cortar partes do corpo e até a matar, segundo investigadores.

Pichação de uma facção criminosa com as normas de conduta no bairro de São José, em João Pessoa Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo
Pichação de uma facção criminosa com as normas de conduta no bairro de São José, em João Pessoa Foto: Hugo Araújo / Agência O Globo

- Antes, a gente estava perdendo muitos profissionais de saúde, de educação. Os ônibus deixaram de circular. O serviço público não chegava mais aqui por medo. O bairro era tão discriminado que a gente não conseguia emprego quando falava que morava aqui. A gente chegava a mentir para viver como um cidadão de bem. O bairro hoje é outro. Não sei se isso é certo ou errado. Só sei que, em termos de vida, para gente foi ótimo - diz Alves.