• Priscilla Geremias
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Desde maio de 2019, a modelo e influenciadora digital* Mariana Ferrer, de 23 anos, compartilha em suas redes sociais posts narrando sua espera quanto a conclusão do inquérito de uma denúncia de estupro feita pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) em dezembro de 2018. A sentença veio em 9 de setembro deste ano e o acusado, o empresário André de Camargo Aranha, 43, foi considerado inocente, em decisão de primeira instância.

Caso Mariana Ferrer: imagens do julgamento escancaram misoginia do judiciário brasileiro (Foto: Reprodução/The Intercept Brasil)

Caso Mariana Ferrer: imagens do julgamento escancaram misoginia do judiciário brasileiro (Foto: Reprodução/The Intercept Brasil)

O caso voltou a repercutir nas redes sociais nesta terça-feira (3) após reportagem publicada pelo The Intercept Brasil que trouxe ao conhecimento público um video que expõe o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, da defesa de André, questionando a acusação de estupro com fotos de Mariana. Ele define as imagens como “ginecológicas”, afirma que “jamais teria uma filha” do “nível” dela e repreende o choro de Mariana: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.

Ao ouvir a fala do advogado de defesa, Mariana reclama do interrogatório para o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. O juiz apenas a avisa que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar água e pede para o advogado manter um “bom nível”. Procurado por Marie Claire, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho não respondeu até o fechamento deste texto. Já o juiz Rudson Marcos disse através da assessoria de imprensa da 3ª Vara Criminal de Florianópolis que não pode responder a entrevistas porque o caso corre em segredo de Justiça.

A promotora de justiça e colunita de Marie Claire Silvia Chakian afirma que é “inaceitável que sejam considerados aspectos do comportamento social e sexual de quem se diz vítima, ou de sua ‘reputação’, experiência sexual anterior etc, como se algumas mulheres pudessem ser consideradas verdadeiras vítimas, em detrimento de outras que não obedeçam ao padrão de ‘recato’ feminino ainda persistente em nossa sociedade”.

“Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito"

Mariana Ferrer

Para a legislação penal não há qualquer distinção nesse sentido: toda mulher submetida a ato sexual sem o seu consentimento, por quaisquer circunstâncias (uso de força física, coação psicológica, abuso da condição de vulnerabilidade em razão da idade, deficiência ou efeito de substância entorpecente), independentemente de seu comportamento social ou sexual, é vítima de estupro. “Qualquer tese contrária abre precedente perigoso inclusive de descrédito das vítimas nas instituições, com reflexos para o aumento de subnotificação, já alta no nosso país. Revoltante é constatar que apesar de tantas conquistas, nosso sistema ainda pode se tornar tão perverso com as mulheres. E como a desconfiança da palavra da mulher, motivada  pelos estereótipos de gênero, construídos e reforçados historicamente, continua prejudicando a forma como meninas e mulheres são ouvidas e revitimizadas nos espaços onde deveriam encontrar acolhida e garantia de seus direitos”, completa Silvia.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes se manifestou sobre as imagens do julgamento publicadas pelo The Intercept Brasil. “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, escreveu em sua conta no Twitter.

Ainda na tarde de hoje, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) denunciou Rudson Marcos por omissão na audiência do caso. “As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual. A vítima, em seu depoimento, é atacada verbalmente por Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do réu”, escreveu o conselheiro Henrique Ávila ao pedir providências à corregedora Maria Thereza de Assis Moura, segundo informações da revista Veja.

Em nota enviada à Marie Claire, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) diz que “manifesta-se em veemente repúdio ao termo ‘estupro culposo’ e afirma que acompanhará recurso já interposto pela denunciante em segundo grau, confiando nas instâncias superiores”. O MMFDH informa ainda que “acompanha o caso desde 2019 e que, quando a sentença em primeira instância foi proferida, em setembro, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM) manifestou-se questionando a decisão, com envio de ofícios ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao Conselho Nacional do Ministério Público, à Corregedora-Geral de Justiça, à Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e ao Corregedor-Geral do Ministério Público de Santa Catarina”.

André Aranha e Mariana Ferrer (Foto: Reprodução/Instagram)

André Aranha e Mariana Ferrer (Foto: Reprodução/Instagram)

Entenda o caso
O MPSC fez uma denúncia de estupro em 16 de dezembro de 2018, após Mariana Ferrer afirmar ter sido violentada em um evento no Café de La Musique, em Jurerê Internacional, praia de Florianópolis, quando  tinha 21 anos. À época, ela passou a compartilhar o caso em suas redes sociais. Em maio de 2019, um exame pericial confirmou a verossimilhança entre os materiais genéticos do empresário André de Camargo Aranha e do corpo de delito de Mariana. Em junho, a delegada do caso pediu um mandado de prisão temporário pela 3ª Vara Criminal de Santa Catarina. Em agosto, o acusado conseguiu Habeas Corpus junto à 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Em 9 de setembro de 2020, ele foi absolvido pela Justiça de Santa Catarina.

Nesta linha do tempo, André mudou a versão do seu depoimento. Primeiro, disse que não teve contato com Mariana e, depois, afirmou que houve contato sexual com ela. Segundo ele, teria sido apenas sexo oral. Exames feitos na época da denúncia comprovaram o estupro. O sêmen encontrado na calcinha da jovem, que era virgem, era de André. Em setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis  afirmou que é “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente” sob o argumento de que "não há provas contundentes nos autos a corroborar a versão acusatória".

Durante o processo, o promotor Thiago Carriço de Oliveira entendeu que o empresário não tinha como saber se Mariana tinha condições de consentir o ato e concluiu que André não teria a intenção de estuprar. A conclusão foi chamada de "estupro culposo" pelo The Intercept Brasil, termo que não se encontra na sentença.  A #justiçapormarianaferrer, o termo “estupro culposo” e os nomes da vítima e acusado estavam entre os assuntos mais comentados do Twitter no Brasil.

Em comunicado oficial, o Ministério Público de Santa Catarina disse que: "Não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Salienta-se, ainda, que o promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do Advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo".

 Mariana Ferrer (Foto: Reprodução/Instagram)

Mariana Ferrer (Foto: Reprodução/Instagram)

O que significa “estupro culposo”?
"Nada”, afirma a advogada Isabela Guimarães Del Monde, integrante da Rede Feminista de Juristas e uma das fundadoras no movimento #MeTooBrasil. “Essa é uma figura jurídica inexistente. O que se pretende criar é a ideia de que o acusado não teve intenção de estuprar, o que é um absoluto contrassenso na medida em que o consentimento ferido em crimes de violência sexual é sempre o da vítima e nunca o do agressor. É uma expressão do machismo que responsabiliza as vítimas pela violência que sofrem”, explica.

Não é a primeira vez que um acusado de estupro é absolvido por falta de provas, mas Isabela reconhece que o ocorrido pode interferir em outros casos de acusação de estupro de vulnerável. “Minha expectativa é que diante da pressão social esse caso seja um acontecimento que leve ao sepultamento definitivo desse tipo de estratégia de defesa ou leve pelo menos ao fim da aceitação dessas estratégias pelo juízes e juízas brasileiros. Claro que há um risco de isso virar um precedente e ser usado em outros casos, por isso mobilização e pressão social são fundamentais”, diz.

E há “estupro culposo” no Código Penal brasileiro? Não. De acordo com a promotora Silvia Chakian, o Código Penal trata apenas de duas modalidades de estupro: a figura do artigo 213, caput, se o ato sexual tiver sido praticado mediante emprego de violência (física) ou grave ameaça contra a vítima; e o artigo 217-A (estupro de vítima vulnerável), que se configura toda vez que o autor mantiver ato sexual com menor de 14 anos; com alguém que por enfermidade ou deficiência mental não tiver o necessário discernimento para a prática do ato, ou quem, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.

“Nesses casos, a violência é presumida pelo legislador, porque a vítima não tinha capacidade de consentir. E consentimento não é sinônimo de submissão. Deve ser expresso, afirmativo, sendo inaceitável a alegação de que determinada mulher ‘parecia consentir’ com o ato sexual, em razão de seu comportamento anterior ou vestuário, mais sedutor, por exemplo”, explica.

*Errata: Mariana Ferrer nos procurou através do Instagram no dia 4 de janeiro de 2021 e pediu correções nos textos que citam seu caso. Editamos a profissão dela – que é modelo e influenciadora digital e não promotora de eventos como dissemos inicialmente – e o fato de que não foi Mariana que acusou André de Camargo Aranha. O indiciamento foi feito pelo MPSC. Mariana também nos informou que não é catarinense, mas mineira.