Exclusivo para Assinantes
Cultura José Eduardo Agualusa

O diabo e o sexo nas escolas sem partido

“Não, não foi consensual! Ele nem sequer perguntou ao cabrito se queria fazer sexo… Um estupro!”, sentencia a diretora

Um escritor é convidado para conversar com estudantes de uma prestigiada escola particular, em São Paulo. Aceita. Ao chegar, tem a recebê-lo um grupo de professoras, simpáticas, mas parecendo um pouco aflitas. Dizem que gostariam de falar com ele antes do encontro com os estudantes. “Temos um pequeno problema com um dos seus romances”, explica a diretora, abrindo um livro e apontando uma passagem na qual um camponês faz sexo com um cabrito. “O senhor entende?”

O escritor não sabe o que dizer. Não esperava aquilo, mas sim, pode entender o desconforto. Antes que diga alguma coisa, uma das professoras adianta-se:

“É que não foi consensual, certo?”

“Não foi consensual?”, murmura o escritor, duvidando dos seus ouvidos.

A diretora, uma mulher magra, muito pálida, apoia a primeira:

“Não, não foi consensual! Ele nem sequer perguntou ao cabrito se queria fazer sexo…”

“Exato!”, continua a primeira. “E se não foi consensual, foi uma violação!”

“Um estupro!”, sentencia a diretora, indignada.

“Um estupro, sem dúvida!”, concordam as restantes professoras, cercando o escritor, que desaba numa cadeira. Vem-lhe uma imensa vontade de chorar. Contém-se a custo. Nunca imaginou que seria um dia apanhado pelo movimento me too das cabras. O mééé too, digamos. Pensa em sair dali correndo. Com sorte, talvez consiga alcançar a rua. Chamaria um táxi. Voltaria para o hotel, faria as malas e seguiria para o aeroporto. Pensa depois em resistir, talvez o melhor seja argumentar racionalmente, com certeza as professoras terminarão compreendendo o absurdo de tudo aquilo. Vejamos, é apenas um romance, um livro de ficção, descrevendo uma realidade que, naquela época, naquele lugar, era quase banal. Em torno dele, porém, cresce o encarniçamento, que não!, grita a diretora, não podem permitir um livro com conteúdo sexual, vastas páginas obscenas, já para não falar na exaltação da feitiçaria e de outros cultos demoníacos.

“Cultos demoníacos?!”. O escritor sente que lhe falha a voz, custa-lhe a respirar.

“Sim!”, exalta-se a primeira professora, o dedo indicador apontado como uma faca ao peito aflito do convidado, os olhos brilhando de ira. “Feitiçaria. Umbanda, todo esse lixo místico africano.”

O escritor gagueja, desculpa-se, limitara-se a descrever práticas animistas ancestrais. Por fim, desiste: “Afinal, do que gostam no livro?”

O rosto da diretora ilumina-se. A voz soa agora mais doce: “Tirando as páginas de sexo e de feitiçaria tem muita coisa boa. A gente corta essas páginas, joga fora, e então passamos os livros aos estudantes”.

“E as perguntas? Eles vão fazer perguntas?”

“Fique tranquilo. Nós já distribuímos as perguntas para eles.”

“Eles não são livres de fazer perguntas?”

“Claro que sim!”, irrita-se a diretora. “Eles farão as perguntas que nós escrevemos para eles.”

O escritor pede licença para ir ao banheiro. Corre até a saída, entra num táxi e indica o endereço do hotel. Olhando para trás, depois que o táxi arranca, ainda consegue ver as professoras, com a diretora à frente, gesticulando num assombro mudo. Pela primeira vez, o escritor pensa em mudar de profissão.