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Julián Fuks: “Quero uma literatura ocupada pela política”

Julián Fuks: “Quero uma literatura ocupada pela política”

O escritor que venceu o Jabuti no ano passado com A resistência defende uma literatura engajada, atravessada por discursos emancipatórios

RUAN DE SOUSA GABRIEL| PARATY (RJ)
28/07/2017 - 16h25 - Atualizado 28/07/2017 17h17

No momento em que o escritor paulistano-argentino Julián Fuks se senta para conversar com ÉPOCA, nos fundos da agradável Pousada da Marquesa, ouvem-se os gritos do público que assiste da praça aos debates da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip): “Fora, Temer! Fora, Temer!”. Fuks sorri. No ano passado, ele venceu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance com A resistência (Companhia das Letras, 144 páginas, R$ 37,90) e arrematou seu discurso com um “Fora, Temer”. Na tarde da quinta-feira (27), ele participou de sua mesa na programação oficial da Flip com o escritor mineiro Jacques Fux. Fuks, o paulista, falou sobre seu livro premiado, que narra, sem nunca confessar o que é ficção e o que é realidade, a história de seus pais, que se exilaram no Brasil durante a ditadura argentina trazendo consigo um filho adotivo, o irmão de Fuks, enigmático protagonista do romance. As intervenções de Fuks foram permeadas pela política, e ele defendeu uma literatura engajada. Na manhã seguinte, ele conversou um pouco mais com ÉPOCA sobre suas propostas para uma literatura política, seus estudos do romance e a influência que as letras argentinas e brasileiras têm sobre ele.

O escritor Julián Fuks (Foto: Iberê Périssé/divulgação)

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ÉPOCA – Qual sua opinião sobre as manifestações políticas que estão ocorrendo desde o início da Flip, como os gritos de “Fora, Temer”?
Julián Fuks –
Essas manifestações políticas são muito necessárias por causa do momento que estamos vivendo, da apatia política que sentimos depois que as ruas foram desocupadas. A Flip tem de comportar uma distorção de sua finalidade original em nome de tudo isso que está acontecendo: a crise política, o golpe que a gente sofreu, a cassação constante de direitos. O público, em geral, está meio anestesiado, mas é preciso haver lugares de discussão, de reação. Não é que a literatura deva ser política sempre. Não é que um evento como esse deve deixar a literatura em segundo plano e colocar a política em primeiro. Mas este é o momento de uma literatura ocupada, de uma Flip ocupada por esse tipo de manifestação. O grito de “Fora, Temer” pode não ter valor efetivo nenhum, mas tem valor simbólico. E a literatura só pode lidar com esses valores simbólicos e tentar produzir reações indiretas, de maneira tênue e sutil. É isso que a literatura tem a seu alcance.

ÉPOCA – Em sua mesa o senhor falou várias vezes sobre o conceito de “literatura ocupada”. O que é uma “literatura ocupada”?
Fuks –
Eu me refiro àquele antigo debate: deve a literatura ser política? Pode a literatura ser política? Há divergências absolutas entre escritores. Alguns dizem que a literatura nada tem a ver com a política; outros, que defendem que a finalidade da literatura é um tipo de intervenção no mundo e, por isso, é, sim, política. Sinto que cada tempo pede um tipo de literatura. Hoje é o momento de uma literatura ocupada, pelas questões mais relevantes do momento. Vivemos uma realidade aguda, percebemos uma tendência ao retrocesso e à violência [argumentativa, inclusive], e a literatura deve dar uma resposta a isso. E a resposta que eu vislumbro é se deixar ocupar por esses discursos, participar desses discursos de emancipação e combate às violências que estamos vivendo.

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ÉPOCA – Qual a diferença entre uma literatura ocupada pela política e uma literatura panfletária?
Fuks –
Quando o discurso político se simplifica demais dentro da literatura, se torna caricato e utiliza tipos de personagens que encampam visões dogmáticas da realidade, a literatura pode se tornar, ela mesma, dogmática e panfletária. A minha proposta de literatura ocupada se distancia bastante da literatura panfletária. Não pretendo tematizar exatamente o que está acontecendo em Brasília, por exemplo, mas perceber como a questão política espelha e afeta nossas vidas pessoais. A partir daquela noção feminista de que o pessoal é político, quero perceber como a política tem a afetado o pessoal e como essas histórias individuais, que são desde sempre o interesse do romance, estão marcadas por uma história política e social.

ÉPOCA – O senhor também é um estudioso da forma romance, defendeu um doutorado sobre o tema. Como o Fuks romancista e o Fuks estudioso do romance dialogam?
Fuks –
A gente dialoga constantemente [risos]... No meu primeiro livro, Histórias de literatura e cegueira (Record), a minha literatura já se deixava tocar pelo meu trabalho acadêmico – e o meu trabalho acadêmico era, por si mesmo, literário. No mestrado, eu estudei a morte do romance e a impossibilidade de narrar, o que me levou a escrever uma ficção sobre esse romance impossível de narrar, Procura do romance [Record]. Sou movido por essas indagações teóricas. Decidi estudar o romance e suas constantes transformações porque me interessava pensar que tipos de transformações são pertinentes e possíveis de executar hoje. É claro que a teoria não vai dar uma resposta única, precisa e cristalina do que deve ser escrito – a teoria é posterior à prática. Para mim, é estimulante fazer o caminho contrário: me valer da teoria para pensar o que é possível fazer com a ficção. Foram essas questões que me aproximaram da autoficção.

ÉPOCA – Na mesa, o senhor também disse que prefere o termo “pós-ficção” a “autoficção”. Por quê?
Fuks –
É uma tentativa de ampliar e transformar a ideia de autoficção. A definição de autoficção é centrada na figura do autor, que ficcionaliza suas vivências, aproximando o romance da autobiografia. Mas uma questão mais ampla é o modo como a literatura tem tocado diretamente diversas realidades e se deixado atravessar por diversos discursos, além do autobiográfico, como os discursos histórico, político e ensaístico. O termo “autoficção” não dá conta da literatura atravessada por todos esses processos, pois fala só da ficção atravessada pela biografia. O que me interessa é a ficção que se deixa permear pelo real, se confunde com o real, se funde com o real. A “pós-ficção” é uma ficção transformada, ocupada pelo real.

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ÉPOCA – Há uma certa obsessão de alguns leitores de separar o ficcional do biográfico nos romances de autoficção. Quais os efeitos dessa ânsia por uma separação clara e distinta entre o fato e a ficção na leitura?
Fuks –
Cada vez mais, há gente que se aproxima de mim para fazer uma pergunta “envergonhada”, dizendo: “Eu sei que não devia perguntar isso para você, mas, por acaso, foi assim mesmo que aconteceu? Você tem mesmo um irmão adotivo? Seus pais foram mesmo vítimas da ditadura?”. O livro indica essas coisas, dá pistas para pensar que tudo o que é narrado está calcado no real. As pessoas não precisam mais se envergonhar de fazer essa pergunta. A teoria literária nos disse que o que interessa está nos livros e que tudo o que for exterior ao livro é indiferente, mas as pessoas estão ansiosas por saber se foi assim ou se não foi assim, e temos de responder com sensibilidade. Algo se transformou, e essa pergunta – é real ou é ficção? – voltou a ter relevância para muitos leitores. E nós precisamos perder a vergonha e responder com mais franqueza e nos perguntar o que está acontecendo que o real está se tornando tão importante quanto foi antes do império da forma romance.

ÉPOCA – O senhor tem alguma hipótese que explique por que o real voltou a ter tamanha importância?
Fuks – Do mesmo modo que há uma crise dos romances e dos romancistas, há uma crise da leitura, que se tornou um ato problemático num mundo acelerado, saturado de informação. Muita gente tem encontrado dificuldade para ver pertinência no ato de ler literatura puramente ficcional na vida cotidiana. Penso que essa obsessão pelo real devolve um sentido de relevância para o leitor, que encara a leitura como um modo de conhecer a vivência efetiva de alguém, uma história que acontece e que, por razões questionáveis ou não, devolve pertinência ao ato da leitura. As pessoas podem aprender com essa leitura, utilizá-la como matéria para pensar suas próprias vidas – o que já era possível no tempo dos romances inventados, que tinham também um caráter pedagógico. Hoje, a ficção “pura” talvez tenha perdido esse elemento pedagógico e o elemento de real devolveria essa pertinência ao ato da leitura.

ÉPOCA – Essas discussões sobre a função da literatura, a posição do autor e o papel do narrador me parecem um papo muito argentino, presente nas obras de autores como Jorge Luis Borges (1899-1986) e Ricardo Piglia (1940-2017). Como as literaturas brasileira e argentina influenciam a sua literatura?
Fuks –
A vocação argentina tem sido, desde sempre, pensar a literatura a partir de si mesma e de se aproximar da crítica literária, não da sociologia e da historiografia. Sempre quis me aproximar disso. A resistência tem esse elemento metaficcional argentino. O Brasil tem uma tradição forte que aproxima a literatura da sociologia para pensar a identidade nacional e as grandes questões históricas do país. Por causa da noção de “literatura ocupada”, quero me aproximar dessa tradição literária que consegue encampar algo da realidade do país, da história e da identidade nacionais. Quero combinar as duas coisas: o vigor crítico que existe na literatura argentina com a pertinência temática da literatura brasileira.

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ÉPOCA – Quais são seus autores argentinos e brasileiros favoritos?
Fuks –
Dos argentinos, Borges sempre foi uma referência importante para mim. E também Juan José Saer [1937-2005], que me inspirou a escrever e que eu estudei no mestrado. Dos contemporâneos, gosto de Alan Pauls. São autores relevantes para pensar a literatura. Dos brasileiros... Ontem, Jacques Fux me acusou levianamente de ser um machadiano enquanto ele seria um roseano [risos]... Machado de Assis me move por trazer à tona, interpretar e inventar um Brasil que permanece até hoje. Graciliano Ramos faz algo semelhante, mas com um Brasil mais específico. Clarice Lispector também, mas do ponto de vista existencial, deixando a questão da identidade nacional em segundo plano em nome de uma busca identitária profunda dos personagens.

ÉPOCA – Na sessão de abertura da Flip, a curadora Joselia Aguiar afirmou que a literatura de Lima Barreto pode nos ajudar a pensar um novo país. Como a literatura pode nos ajudar a pensar um projeto de país ou o futuro?
Fuks –
Neste momento, precisamos com urgência pensar um novo país, recuperar a utopia e a capacidade de enxergar além desta realidade depauperada que está diante de nossos olhos. É tempo de profundo desalento no país, e só vamos escapar da crise quando escaparmos desse desalento, dessa desilusão. Não sei se a literatura é capaz de nos indicar como fazer isso – e nem pretenderia eu mesmo fazer uma literatura que propusesse esse tipo de emancipação. Não tenho tanta imaginação para pensar esse país que surgiria a partir da literatura. Se a literatura for capaz de recuperar algo desse sentimento utópico e levar o país a voltar a lutar contra suas desigualdades históricas, ela terá feito uma grande coisa. Mas isso é pedir demais da literatura. Esse é o papel de cada um de nós.








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