Em meio à imposição de um único padrão de beleza e à pressão pela "ditadura do cabelo liso", homens e mulheres negros desafiaram as normas impostas pela estética ao longo do anos e ressignificaram os ideais de autoestima e as definições do "belo", por meio da valorização da própria identidade.
Em referência ao Dia da Consciência Negra – celebrado nesta sexta-feira (20) – o G1 conversou com mulheres, mães, crianças e especialistas que sentem na pele as dores e as delícias da negritude e, com eles, os impactos do racismo.
A cantora Cris Pereira, de 41 anos, tem duas filhas – de 5 e 11 anos. A família, que mora na Asa Norte, em Brasília, conta que é natural ter conversas e debates em casa sobre os significados de "ser uma menina de pele preta" e de cabelos crespos.
Por outro lado, a mãe das crianças explica que "tenta ao máximo positivar a presença negra" nas filhas, em vez de destacar os reflexos do preconceito racial. "Tento desenvolver nelas a atenção por outros tipo estética. A beleza faz parte dessa visão de mundo, é importante na criação de crianças negras para também deixá-las seguras", afirma Cris.
"Explico que a visão de mundo delas está mergulhada na negritude da pele, na história da nossa família. Mas, é importante entender que a beleza negra em si não é a primeira camada do que precisa ser abordado na educação de todas as crianças, é apenas parte."
Na família, a valorização da própria identidade também passa pela representatividade. Cris comprou bonecas pretas para as filhas. A busca, no entanto, por brinquedos que se pareçam com as meninas nem sempre foi fácil.
"Hoje conseguimos encontrar mais bonecas do tipo [negras], mas 11 anos atrás era um pouco mais difícil. É sempre uma busca", diz a mãe.
Autoestima e identidade
Sophia Emanuelly, de 6 anos, fala sobre os próprios traços e de como se vê
Na casa da pequena Sophia Emanuelly Silva, de 6 anos, beleza, autoestima e identidade também andam juntas. A valorização dos próprios traços reflete na personalidade da menina.
"Sou preta. Gosto da minha cor, porque cor preta é legal e também cor branca. Qualquer cor é legal", diz Sophia, ao explicar como se vê.
A psicanalista Bianca Campos, que atua na área clínica voltada para as relações raciais, afirma que a valorização da própria imagem, especialmente em crianças negras, é essencial, sobretudo, na infância.
"A criança está no momento em que forma o conceito de mundo. Costuma ser um processo muito sofrido, desde a saída de casa em que 'é tudo bem ser negro', até a fase de escolarização, em que faltam, muitas vezes, a atenção, o olhar de cuidado dos adultos", explica.
"Nas crianças negras, quando esse corpo é menos olhado, recebe menos carinho de quem cuida [professores], aprende-se que essa é a forma de se relacionar com o outro. Isso leva à normalização de situações às vezes abusivas quando adultas", diz Bianca.
Para a especialista, nos consultórios, muitas vezes, pacientes que passaram por situações de racismo ou aqueles que enfrentam a negação da própria identidade, têm dificuldade em dar nome ao que sentem: ser vítima de um preconceito racial.
Apesar de atender pessoas negras de 7 a 70 anos, a maioria que procura o consultório com esse tipo de demanda é adulto, conta Bianca. Isso acontece porque, segundo ela, "o processo de consciência racial, de busca por um cuidado de si e do reconhecimento da violência racial ainda são fenômenos contemporâneos."
Em relação à autoestima e o "enxergar beleza nos próprios traços", a psicanalista explica que quando se fala em questões raciais, "a autoestima é anteparo [uma camada] para formar a necessidade da pessoa de exercer a própria autonomia".
"Ter autoestima é mais do que a valorização do corpo e dos traços da negritude, é um exercício para a busca da realização dos próprios desejos", diz a psicanalista.
Brasil e África
Em um viés semelhante, dessa vez da antropologia, a escritora e professora Denise da Costa – da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) – pesquisa as emoções de mulheres negras ao lidar com o cabelo cabelo no Brasil e em Moçambique, um país africano.
A antropóloga explica que o termo "lida" é usado em referência ao "trabalho árduo e duro" de mulheres escravizadas. "É o mesmo trabalho duro que se mantém ainda hoje na lida com a corporalidade", aponta.
Para a antropóloga, se por um lado existe um movimento de valorização, um processo profundo de auto amor, o racismo ainda aparece muita força. Por isso, datas como o Dia da Consciência Negra devem ser tidas como momento de reflexão.
"É para celebrar esse movimento interno forte de valorização estética, corporal e psicológica, mas não podemos só festejar, temos que perceber que as forças reacionárias vêm com força", diz a antropóloga.
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