• Luisa Brandão Arantes e Vítor Boaventura* 
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Os seguros rurais vivem um momento positivo no Brasil e as perspectivas para os próximos anos são de crescimento. O mercado segurador e os segurados, ambos cada vez mais conscientes da importância do gerenciamento dos riscos no campo, podem se beneficiar com o prometido aumento nas subvenções por parte do governo federal e de alguns estados.

Mas o debate sobre o futuro dos seguros rurais não se encerra na avaliação dos números sobre a comercialização. A qualidade das coberturas e a disciplina contratual dos deveres de controle dos riscos associados à atividade rural devem ser aprimorados para os seguros rurais auxiliarem os produtores a atingir a conformidade ambiental.

vozes-do-agro-seguro-novo (Foto: Estúdio de Criação)

 A percepção de que o seguro pode funcionar como um instrumento de governança não é recente. Desde o início deste século, acadêmicos identificam elementos de incentivo a políticas de controle, regulamentações e conformidade normativa na relação estabelecida entre as partes envolvidas nos contratos de seguros.

Os seguros rurais podem ajudar a atingir a governança ambiental, cuja importância se amplia no contexto atual de valorização das finanças verdes e profissionalização da gestão das propriedades rurais do país.

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Essa percepção do seguro como um instrumento de governança é fruto de uma longa jornada, na qual ele deixou de ser conhecido apenas por sua função indenizatória e passou a ser conhecido pela prevenção de riscos. A contratação de seguros não significa, necessariamente, que o segurado passa a ter uma conduta de maior propensão à materialização do risco. Quando bem elaborado, o contrato resulta em segurado e segurador comprometidos com uma conduta de controle do risco.

A partir desta compreensão, é possível utilizar o seguro como uma ferramenta regulatória de incentivo para atingir qualquer valor extrínseco, reconhecido pela sociedade e atribuível ao conceito de governança. Quando aplicado este raciocínio, o que se percebe é que o seguro rural pode ser mais um incentivo para a tomada de decisões em concordância com as normas ambientais e os ideais de desenvolvimento sustentável.

O mercado segurador precisa agir com a ética esperada de quem tem uma função social, cultural e econômica importante a cumprir. A formatação dos seguros rurais, atualmente subvencionada pelo Estado, permite aos formuladores e gestores das políticas agrícolas e ambientais a inclusão de determinações e incentivos para que a oferta e cobertura do seguro rural fique condicionada à observação de determinados parâmetros de preservação ambiental e aos objetivos de desenvolvimento sustentável.

Nessa perspectiva, os seguros rurais podem contribuir com outros setores da economia para o Brasil cumprir o seu compromisso, assumido no Acordo de Paris, de reduzir as emissões de dióxido de carbono.

Nada mais natural que o setor de seguros, pioneiro na produção e disseminação de informações sobre o aquecimento global, seja igualmente pioneiro na formulação de alternativas para atingir um estado de conformidade ambiental e sustentável no campo. 

Em 1973, resseguradora alemã já alertava o mundo sobre a possibilidade de enormes prejuízos decorrentes de mudanças climáticas. Tal alerta continuou sendo feito por grupos maiores ao longo dos anos, à medida em que a tecnologia e o conhecimento acumulado chegaram a evidências cada vez mais incontestáveis da crise do clima.

Apoiada em muitas dessas evidências, Elizabeth Kolbert escreveu “A Sexta Extinção”, livro vencedor do Pulitzer de não-ficção no ano de 2015. A autora mostra que o mundo passou por cinco brutais extinções em massa nos últimos 500 milhões de anos. Enquanto cada um dos cataclismas teve causas naturais, opina, estamos rumo ao sexto, que se particulariza por ser resultado da intervenção humana na natureza.

O relatório provisório do Estado do Clima Global de 2020, divulgado pela Organização Meteorológica Mundial, nos parece um incontestável indício da veracidade da profecia de Kolbert. O documento mostrava que a década de 2011 a 2020 seria a mais quente desde 1850, quando os registros começaram. Houve uma desaceleração das emissões de gases de efeito estufa como consequência da política de isolamento forçada pela pandemia, mas a concentração deles continua a aumentar na atmosfera.

"A previsão para o próximo ano é de persistência da seca e o produtor precisa estar preparado para enfrentar perdas que talvez não consiga suportar sozinho"

Luisa Brandão Arantes e Vítor Boaventura, advogados

Dentre os muitos desastres naturais causados pelo aquecimento global em 2020, o relatório cita a grave seca que atingiu a América do Sul, em especial partes da Argentina, Paraguai e a fronteira oeste do Brasil.

Os prejuízos decorrentes da estiagem e dos incêndios provocados por ela somam aproximadamente US$ 3 bilhões só para o agronegócio brasileiro contribui de forma direta para o aumento da procura por seguro rural no país. A previsão para o próximo ano é de persistência da seca e o produtor precisa estar preparado para enfrentar perdas que talvez não consiga suportar sozinho.

“Os rinocerontes cinzas” e a retomada verde

Em 17 de novembro último, a jornalista Michele Wucker publicou na The Economist um artigo no qual defendeu que a comunidade econômica errou ao interpretar a pandemia como um cisne negro, termo empregado para identificar um evento improvável e imprevisível. Ao contrário, ela defende que a pandemia é um rinoceronte cinza: um perigo óbvio, perfeitamente visível e que trará consequências previsivelmente catastróficas.

Durante anos, foram ignorados os avisos de especialistas e os sinais claros, evidenciados por surtos epidêmicos mundo afora, de que não estávamos preparados para uma eventual pandemia, negligenciando investimentos em saúde e, sobretudo, políticas de prevenção em relação ao risco sanitário.

Michele acredita que uma das maiores lições da pandemia é que precisamos ficar mais atentos aos sinais que anunciam riscos com alto potencial de impacto. Na sua opinião, as mudanças climáticas, a crescente desigualdade social, o alto endividamento corporativo e as bolhas de ativos são outros exemplos óbvios de riscos conhecidos e mal geridos que espreitam a humanidade: é a manada de rinocerontes que espera por nós.

Em relação à crise climática, as bandeiras de alerta já tremulam, e os prejuízos da negligência se ampliam. Por todo o Brasil, produtores sentem os impactos do clima que muda, com o prolongamento dos períodos de estiagem e seca e com os incêndios que se avolumam.

Na contramão da tendência de cooperação mundial, a política ambiental e externa do atual governo brasileiro tem sido desastrosa tanto para a natureza quanto para a imagem do agronegócio no cenário internacional. Dados preliminares do Instituto Nacional de Pesquisas e Espaciais (Inpe) acusam um novo recorde de desmatamento na Amazônia, cuja área devastada em 2020 foi a maior desde 2008.

A reputação da agropecuária está em franca decadência desde o início do mandato de Bolsonaro, e tanto o Itamaraty quanto o Ministério do Meio Ambiente atuam em flagrante descompasso com o Ministério da Agricultura, que não apenas parece compreender que o capitão não sabe ler a bússola, como emite sinais concretos de comprometimento da pasta com a agenda de preservação ambiental.

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Não há dúvida de que, no curto prazo, o endurecimento das exigências de sustentabilidade do agronegócio brasileiro faz cogitar-se a aplicação de sanções comerciais à nossa produção, para além do desgaste reputacional que já experimenta.

No entanto, o momento não deixa de ser uma oportunidade de, finalmente, desenvolvermos uma cooperação eficiente dos setores público e privado em prol da construção de um agronegócio cada vez mais produtivo e limpo através do seguro.

Apesar dos desafios, está em andamento a mudança de cultura do agronegócio para privilegiar a sustentabilidade na produção, o que irá trazer benefícios ambientais, sociais e econômicos ao Brasil. O agronegócio, setor fundamental para a economia brasileira, merece uma melhor cobertura de seguros para os riscos de sua atividade.

E por que não fazer dela o trampolim para uma nova revolução verde no campo? Nos próximos artigos da série, abordaremos em detalhes as possibilidades da aplicação do seguro como uma ferramenta para atingir a conformidade ambiental e alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável e vamos comentar a importância de uma gestão eficiente dos riscos do campo para garantir a soberania alimentar brasileira. 

* Luisa Brandão Arantes é advogada, sócia de Ernesto Tzirulnik Advocacia (ETAD) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

* Vítor Boaventura é advogado, sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia (ETAD), membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science (Reino Unido).

As ideias e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do seu autor e não representam, necessariamente, o posicionamento editorial da Revista Globo Rural.