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Duzentos anos de vacinação no Brasil: da rejeição a um modelo para mundo

Imunizante foi motivo de revolta no início do século XX
Criança recebe vacina contra a poliomielite na década de 1970: para imunologistas, aumento da circulação de pessoas proporcionado pela globalização é o novo desafio à saúde pública Foto: Luis Pinto/27-6-1977
Criança recebe vacina contra a poliomielite na década de 1970: para imunologistas, aumento da circulação de pessoas proporcionado pela globalização é o novo desafio à saúde pública Foto: Luis Pinto/27-6-1977

RIO — Um nobre e alguns escravos protagonizaram o início de uma história que revolucionou a saúde pública no Brasil. Atualmente consideradas imprescindíveis, as vacinas foram motivo de ojeriza logo após sua descoberta, no Reino Unido do final do século XVIII. Não à toa o Barão de Barbacena, com a bênção do imperador D. Pedro II, preferiu testá-las primeiro em sua mão de obra, que recebeu a inoculação de um material retirado das pústulas de animais e passado braço a braço, antes de trazê-la para o lado de cá do Oceano Atlântico. Era a mais nova forma de combater a varíola, que matava milhares de pessoas no país. Vencida a doença, outras tantas provocaram surtos que assombraram a medicina, mas a imunização é cada vez mais acessível — o governo federal distribui 300 milhões de doses por ano.

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Até a fundação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, a população brasileira passou por maus bocados. Durante o século XIX, quando o poder das vacinas foi reconhecido, seu acesso era monopolizado pela aristocracia, que só imunizava os escravos necessários para manter a produtividade no campo.

Apavoradas com as vacinas, que nunca fizeram parte de sua realidade, as camadas populares reagiram mal quando, em 1904, uma frente liderada pelo sanitarista Oswaldo Cruz quis impor a imunização contra a varíola nas zonas urbanas. Havia quem acreditasse que a vacina daria feições bovinas, já que consistia no líquido de pústulas de vacas doentes.

Monarquistas, operários, estudantes e cadetes pararam o Rio, então capital da República, em protesto contra os militantes que arrombavam a casa das pessoas para realizar a imunização. A Revolta da Vacina culminou em quase 950 presos e 460 deportados. Nos anos seguintes, uma epidemia levou o carioca a procurar o governo por conta própria.

— Foi um divisor de águas na saúde pública — destaca Eduardo Maranhão, pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. — Ainda assim, até a criação do PNI, a vacinação ficou concentrada nas grandes capitais, como Rio e São Paulo, sem penetração no interior do país.

O sarampo provocou epidemias, foi erradicado do país em 2016, mas volta a assustar Foto: Olívio Lamas/16-8-1984
O sarampo provocou epidemias, foi erradicado do país em 2016, mas volta a assustar Foto: Olívio Lamas/16-8-1984

A falta de um planejamento nacional resultou, nas décadas seguintes, em epidemias de febre amarela e poliomielite. Mesmo depois da PNI, o brasileiro sofreu com sintomas de meningite, sarampo, difteria, tétano e coqueluche. Campanhas como a criação do personagem Zé Gotinha, nome escolhido em um concurso com estudantes de todo o país, foram adotadas para levar a população aos postos de saúde.

Coordenadora do PNI, Carla Domingues reconhece que “todo ano traz um desafio”. Um dos motivos para isso é a globalização, que permite que um indivíduo contaminado com uma doença se desloque rapidamente para outro local em que a enfermidade está erradicada. Sua presença pode ser suficiente para provocar o surgimento de um novo surto.

— Já vimos 100 mil casos por ano de sarampo, a epidemia de influenza, a erradicação da poliomielite. O sucesso do programa depende de sucessivas superações — destaca. — O maior desafio é demonstrar para a população que é necessário tomar a vacina mesmo quando ela não aparece no noticiário, porque trata-se de um mecanismo de prevenção e cuidado para a saúde. E não podemos focar em apenas um ponto. A cobertura vacinal deve ser elevada para todas as enfermidades. Qualquer uma pode ser a bola da vez.

Eduardo Maranhão elogia a estatura do PNI, elevado à condição de referência internacional, mas indica questões a que os coordenadores do programa devem dedicar mais atenção:

— Uma coisa é engatar um programa de vacinação em países pequenos. Outra é conseguir o mesmo sucesso em uma nação de proporções continentais como o Brasil. A vigilância epidemiológica é uma atividade contínua, que deve ser estendida do governo federal aos municípios, e para isso precisamos de técnicos adequados para este trabalho. Hoje, os funcionários mais velhos envolvidos com este processo estão se aposentando, e os jovens precisam ter melhor preparo.