• Elisa Campos Elisa Campos e Fabiano Candido (com Tatiana Pronim)
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O mundo conheceu em janeiro, em Las Vegas, o primeiro computador quântico de uso comercial abrangente (Foto: Graham Carlow/divulgação )

ELE CHEGOU O mundo conheceu em janeiro, em Las Vegas, o primeiro computador quântico de uso comercial abrangente (Foto: Graham Carlow/divulgação )

A feira anual Consumer Electronics Show (CES), em Las Vegas, conta boa parte da história da tecnologia desde 1967. Na edição mais recente, 180 mil pessoas do mundo todo passaram pelos corredores do evento para conferir os produtos que as empresas expositoras vão tentar nos vender nos próximos meses. Alguns vão emplacar, outros vão cair no esquecimento. Mas um lançamento em especial, em 8 de janeiro, tem boa chance de ser lembrado para sempre: o Q System One, da IBM, primeiro computador quântico do mundo de uso comercial abrangente. O equipamento negro com aparência de escultura futurista é um marco histórico. Entramos numa nova fase de uma maratona iniciada há décadas. Trata-se de uma corrida para levar a tecnologia dos laboratórios até o dia a dia das companhias — um esforço que hoje inclui colossos como Alibaba, Google e Microsoft, além de startups. Em sua famosa curva de adoção de novidades, a consultoria Gartner estima de cinco a dez anos para que a computação quântica entre na fase de uso produtivo nos negócios (antes disso, a tecnologia deve passar pelo pico das expectativas infladas e pelo vale das decepções). O caminho vai ser tortuoso. Já temos, porém, algumas certezas.

Computação quântica: entenda como ela funciona

A nova tecnologia será muito melhor para fazer simulações complexas e tratar de questões probabilísticas — e a IBM vai tentar convencer o mercado a acelerar a mudança. “Precisamos da computação quântica para simular a natureza. Isso vai ser fundamental para a descoberta, entre outras coisas, de novos medicamentos”, afirmou o americano Robert Sutor, vice-presidente da IBM responsável pela estratégia quântica da empresa e doutor em matemática pela Universidade de Princeton. Sutor enumera algumas outras atividades que vão se beneficiar de simulações mais perfeitas: gestão de investimentos, mensuração de risco em diferentes cenários, pesquisas de novos materiais.

Os computadores quânticos da IBM têm estrutura pensada para facilitar a refrigeração extrema e garantir mais estabilidade (Foto:  Graham Carlow/divulgação )

"O LUSTRE" Os computadores quânticos da IBM têm estrutura pensada para facilitar a refrigeração extrema e garantir mais estabilidade (Foto: Graham Carlow/divulgação )

Em cada setor é possível imaginar um exemplo de aplicação. A agricultura em grande escala depende de fertilizantes artificiais e a produção do insumo exige alta pressão e temperatura. O processo devora algo entre 1% e 2% do total de eletricidade consumido no mundo. Na natureza, bactérias realizam o mesmo processo químico em condições normais de temperatura e pressão. “Sabemos mais ou menos quais são as reações envolvidas, mas não conseguimos simulá-las [para entendê-las] na computação clássica”, diz Carlos Cardonha, de 36 anos, pesquisador na IBM. “A esperança é que com a computação quântica possamos fazer essas simulações. Resolvendo só esse problema, já se pagam todos os investimentos feitos por empresas e governos no setor nos últimos 30, 40 anos”, afirma o brasileiro, cientista da computação com mestrado em computação quântica na USP e doutorado no Zuse Institute, na Alemanha.

As startups que apostam na computação quântica

Na indústria farmacêutica, um dos processos mais complexos é simular, em detalhes, o dobramento e desdobramento de moléculas de proteínas, e sua interação com novas drogas. Hoje, é impossível reproduzir o que ocorre no nível molecular sem gastar muita energia e meses de processamento (uma iniciativa famosa na área é o folding@home, que se propõe a lidar com a questão usando o poder distribuído de milhões de PCs). A computação quântica pode reduzir o tempo de processamento desse tipo de problema para minutos, talvez segundos, e ajudar na engenharia de moléculas de remédios mais precisos no enfrentamento de doenças como Alzheimer e Parkinson.

A canadense D-Wave, fundada em 1999, vem fazendo progresso por um caminho tecnológico alternativo ao da IBM (Foto: Divulgação)

STARTUP PIONEIRA A canadense D-Wave, fundada em 1999, vem fazendo progresso por um caminho tecnológico alternativo ao da IBM (Foto: Divulgação)

Há previsões de mudanças tectônicas no setor de segurança da informação. Encriptação quântica pode ser invulnerável diante de ataques feitos por computação clássica. Mas algumas formas de criptografia comuns atualmente tendem a se tornar obsoletas de uma vez só, se o poder de processamento quântico for usado para quebrá-las — o que varreria do mapa empresas do setor que não se prepararem para a mudança. “Computadores quânticos representam um avanço de dimensão tal em poder de processamento que têm o potencial para expor o setor financeiro a violação sistêmica das medidas de segurança atuais”, escreveu em setembro Elisabetta Zaccaria, chairman da ONG Secure Chorus, que reúne entidades privadas e governamentais para debater segurança digital. “Esse avanço pode ser desastroso para o setor financeiro se não for adequadamente antecipado e administrado”, afirmou a executiva — ela estima que o choque vá ocorrer a partir de 2025.

Em novembro, em artigo na revista científica Nature, três pesquisadores (Aleksey Fedorov, Evgeniy Kiktenko e Alexander Lvovsky) do Centro Quântico Russo, em Moscou, e da Universidade de Oxford afirmaram que o blockchain — tecnologia hoje vista como futuro da segurança digital — será quebrado em apenas uma década pelo avanço da computação quântica. O perigo não vai se restringir aos serviços financeiros. Profissionais de segurança digital vão precisar rever seus métodos. Os hackers certamente já estão fazendo isso.

A mudança radical ocorre porque a nova tecnologia tem fundamentos completamente distintos de sua predecessora. A computação clássica se apoia na lógica binária, em que um bit vale 1 ou 0. Em vez de bits, computadores quânticos usam qubits para fazer cálculos. Um qubit pode valer 1, 0 ou alguma combinação intermediária dos dois. Isso dá à nova tecnologia capacidade de resolver problemas aparentemente impossíveis atualmente. O comportamento estranho dos qubits é regido pelas leis da física quântica, que explica fenômenos subatômicos, extremamente minúsculos e rápidos. Por causa dessas leis, procedimentos triviais na programação quântica ganham nomes dignos de ficção científica, como “entrelaçamento de qubits” e “teleporte quântico”.

O potencial da novidade começou a chamar a atenção de governos e empresas nos anos 80, após matemáticos como o legendário Richard Feynman assentarem os alicerces teóricos para a tecnologia. A IBM avança na área desde a década de 90, quando ainda era difícil imaginar efeitos na realidade corporativa. O futuro chegou, e um estudo da consultoria BCG estima que o mercado de computação quântica alcance US$ 50 bilhões até 2030. Vem avançando o investimento em startups dedicadas a desenvolver software e construir componentes para o novo segmento. Foram US$ 43 milhões em 2016. Um ano depois, em 2017, o número sextuplicou para US$ 248 milhões, segundo o CBInsights.

No final do ano passado, o governo americano se comprometeu a investir US$ 1,2 bilhão no segmento em cinco anos. O movimento segue iniciativa semelhante da União Europeia, que irá destinar € 1 bilhão ao longo de dez anos. Já a China anunciou um pacote de US$ 10 bilhões, que inclui a construção de um centro de pesquisa especializado na área, a iniciar seus trabalhos em 2020. Os chineses lideram o número de publicações científicas no segmento, desde 2013.

O chip quântico da empresa americana Rigetti tem design circular, diferente do padrão no mercado (Foto: Divulgação)

CARA NOVA O chip quântico da empresa americana Rigetti tem design circular, diferente do padrão no mercado (Foto: Divulgação)

Por enquanto, nenhuma empresa brasileira usa a computação quântica, afirma o diretor do Laboratório de Pesquisas da IBM Brasil, Ulisses Mello — um doutor em geologia que enveredou pela computação ao desenvolver software para exploração de petróleo. “Tivemos algumas conversas na área bancária”, diz. O cenário interno de economia fraca realmente recomenda cautela em transições do tipo. Em outros países, a IBM conquistou seus primeiros aliados. Fez parceria com empresas como Barclays, JP Morgan, Daimler, Honda e Samsung, para explorar possibilidades em cada setor. A Samsung investiga novos materiais para microeletrônicos. A Daimler, fabricante dos carros Mercedes-Benz, quer encontrar tecnologias alternativas para baterias. O JP Morgan pretende sofisticar atividades como análise de risco e precificação de ativos.

A IBM não é a única a fornecer a tecnologia. A companhia canadense D-Wave atua há duas décadas e criou seu primeiro protótipo em 2007. A abordagem tecnológica da empresa é questionada. Segundo pesquisadores, o equipamento, apesar de potente (tem 2 mil qubits, ante os 20 do Q System One apresentado na CES), opera com alta instabilidade e é limitado a algumas aplicações específicas. Mesmo assim, organizações como Volkswagen, Nasa e Fujitsu decidiram testar a tecnologia e compraram algumas máquinas, que custam em torno de US$ 15 milhões. Google, Intel e Microsoft também têm iniciativas na área.

Nada disso significa substituição pura e simples dos PCs instalados nas empresas consumidoras de tecnologia. A computação clássica vai continuar eficiente e barata para tarefas determinísticas (e não probabilísticas), como processar folhas de pagamento, gerir bancos de dados, rodar aplicativos, navegar na internet. A computação quântica, por enquanto, não ajuda nessas tarefas. O modelo que se vislumbra, ao menos para as próximas décadas, é híbrido. Além disso, o modelo de negócios mais provável para a tecnologia quântica é a oferta de serviços em nuvem. Os clientes não terão a tecnologia nos PCs e celulares. Afinal, as máquinas quânticas têm alta sensibilidade e precisam de uma parafernália para funcionar.

Robert Sutor, vice-presidente da IBM, acredita que a nova tecnologia abrirá fronteiras em áreas como a farmacêutica (Foto: Divulgação)

AONDE VAMOS Robert Sutor, vice-presidente da IBM, acredita que a nova tecnologia abrirá fronteiras em áreas como a farmacêutica (Foto: Divulgação)

O computador da IBM opera em uma temperatura próxima ao zero absoluto (-273°C) — mais frio do que o espaço sideral. Também precisa de isolamento: vibrações tão sutis quanto as emitidas pelos movimentos de pessoas próximas fazem o processamento falhar. Frederico Borges de Brito, de 39 anos, professor do Instituto de Física da USP São Carlos, participou de pesquisas na IBM, no consagrado J. Watson Research Center, em Nova York, nos Estados Unidos, e lembra como o trabalho era penoso. “Eram muitos dias de frustração e poucos de excitação”, diz. “É muito difícil colocar as teorias em prática e ter equipamentos 100% confiáveis.” Mesmo assim, o cientista mostra otimismo. “Estamos na infância da era quântica. Em cinco anos, vamos ter máquinas confiáveis. Em dez, estaremos diante de máquinas poderosas. Em 20, não consigo nem imaginar”, afirma. Brito tem conhecimento de causa. Fez parte do time da D-Wave e ajudou na concepção dos primeiros protótipos da empresa.

Físicos na academia lidam com as incertezas quânticas há décadas, na teoria e em experimentos. No mundo corporativo, os responsáveis por decisões tecnológicas precisam se apressar em entender do assunto. “O CEO vai ter de estudar e entender para que serve e quais resultados a computação quântica traz para o negócio”, afirma Fabio Gandour, ex-executivo da IBM, cientista e consultor na área de tecnologia aplicada.

Após encontrados os problemas específicos do setor ou da empresa que podem ser resolvidos pela nova tecnologia, a companhia terá de contratar novos tipos de profissionais — ou treinar sua equipe para trabalhar com o mundo quântico. As equipes de TI precisarão ter desenvolvedores capazes de criar algoritmos quânticos, diz Gandour, o que requer um extenso domínio de álgebra linear. Mercado e academia concordam: matemáticos e físicos serão necessários. Mas não há motivo para alarme. Engenheiros e desenvolvedores formados na computação clássica podem treinar para usar a novidade. Há linguagens de programação que se propõem a formar uma interface entre a lógica dos algoritmos atuais (com que os profissionais da área já sabem lidar) e as instruções para as novas máquinas. A Microsoft criou uma linguagem desse tipo, chamada Q# (diz-se “q sharp”), e o Google apresentou a Cirq, uma plataforma aberta para criação de algoritmos quânticos. A americana Rigetti oferece download de ferramentas para quem quiser fazer experiências básicas com o novo tipo de programação.

Já a IBM mantém na internet uma página em que é possível, pela nuvem, programar um computador quântico. Segundo a empresa, há mais de 80 mil experimentos de universidades e mais de 150 papers publicados com base nas operações dessa máquina. Em empresas que queiram se dedicar a desenvolver tecnologia, porém, a formação do “time quântico” pode se tornar um novo desafio. Cardonha, da IBM, diz: “Se tivesse de escolher entre desenvolvedores com 20 anos de experiência e físicos recém-formados com boa nota em álgebra linear, ficaria com os físicos”.

Os primeiros passos foram dados. A computação quântica pode nos levar a território novo. Se o passado do setor de tecnologia nos servir como guia, podemos dizer que provavelmente estamos superestimando o que a computação quântica será capaz de fazer nos primeiros anos e subestimando — e muito — o que virá.

Essa matéria faz parte da edição de fevereiro. Quer conferir o conteúdo completo de Época NEGÓCIOS? A revista deste mês já está nas bancas e no Globo Mais, disponível para tablets e smartphones.