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'O luto pela Marielle é um processo permanente na minha vida', diz assessora que estava no carro com a vereadora

Fernanda Chaves diz que não existe mais normalidade e que segue em frente por sua filha e porque era isso que parlamentar assassinada esperava dela
Fernanda Chaves, assessora de Marielle Franco, estava no carro com a vereadora no momento do assassinato Foto: Arte de Luiz Lopes
Fernanda Chaves, assessora de Marielle Franco, estava no carro com a vereadora no momento do assassinato Foto: Arte de Luiz Lopes

Fernanda Chaves, assessora que estava ao lado de Marielle Franco no momento de sua execução, acompanha cada etapa da investigação há um ano. Para ela, é vergonhoso e triste que, depois de todo esse tempo, não se saiba quem foi o mandante do crime que vitimou a vereadora e o motorista Anderson Gomes.

Em entrevista concedida ao GLOBO antes da prisão dos dois suspeitos do assassinato de Marielle, Fernanda afirma que busca encontrar sentido no fato de ter sobrevivido ao atentado: "Dá uma certa vergonha pensar que eu saí ilesa. Por mais que eu ame a vida, por mais que eu queira viver muito."

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Quando conheceu a Marielle?

Em 2006. A gente estava fazendo a campanha do Marcelo Freixo (PSOL) para deputado estadual, no Rio, e a Marielle era uma referência na Maré. Mas a amizade começou mesmo quando trabalhamos juntas no mandato dele. Tem uma coisa que todo mundo fala sobre ela e que é verdade: a gente sempre lembra da primeira vez que a viu. Eu lembro de vê-la e pensar “acho que aquela é a Marielle”.

Como era trabalhar com ela na câmara?

Quando Marielle foi eleita vereadora, com quase 47 mil votos, eu morava em outra cidade. Um dia, ela me ligou perguntando se eu estava preparando a mudança para o Rio. Era um mandato empolgante, sob o ponto de vista da política local. Era colorido, LGBT, jovem e progressista, o que também era estimulante para mim do ponto de vista profissional. Logo no primeiro dia, uma das assessoras dela, uma mulher trans, recebeu o crachá com o nome de registro masculino. A Marielle foi à presidência da casa explicar que era contrangedor para uma trans se deparar com um nome que não é o social. Foi uma vitória logo de primeira.

Havia indicação de que ela corria perigo?

A gente não imaginava. Marielle era uma especialista em segurança, sabia lidar com esse tema, então jamais negligenciaria essa questão, mas um crime não estava no nosso radar. As pessoas falam muito das milícias, mas esse assunto não era muito pertinente na atuação dela como vereadora. Isso, aliás, como cordenadora, sempre me vem à cabeça: como a gente não anteviu o que aconteceria? Marielle nunca tinha sido ameaçada. A quantidade de mensagens de ódio era muito baixa. Se você comparar a Marielle com outras mulheres desse perfil combativo, e até com outras parlamentares, ela era de longe a menos atacada.

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O que você espera das investigações?

É triste demais, a essa altura, não ter o mandante do crime. Até porque, quando você não sabe de onde veio, não sabe do que se proteger. É muito angustiante. Não é possível dizer que Marielle tenha incomodado um setor específico da sociedade. Ela incomodava um grande setor que não admite uma mulher como ela no espaço de poder. Marielle era jovem, negra, lésbica, favelada e feminista. Seria irresponsável da minha parte apontar possibilidades, mas eu acordo e vou dormir querendo saber quem mandou matar Marielle.

O que mudou na sua vida depois da morte dela?

Foi um ano muito difícil. Tive que sair da minha casa e da minha cidade, minha filha teve que abandonar a escola. Eu, meu marido e minha filha saímos do país. A princípio, íamos esperar que as investigações chegassem a um patamar em que a gente pudesse ter noção de quem era o mandante do crime. Não pude voltar ao Rio para enterrar um parente. As perdas, aliás, são muitas: perdi a Marielle, que era madrinha da minha filha e minha chefe. Perdi o símbolo de vida que ela estava se tornando. Fizeram isso com ela exatamente por conta do potencial da Marielle. Em pouquíssimo tempo, ela seria uma liderança nacional, não tenho a menor dúvida. Dá medo? Sim. Mas não há outra possibilidade senão seguir.

Como foi o acompanhamento e a proteção das autoridades?

Eu fui acompanhada, em um primeiro momento, pela Anistia Internacional. Foi tudo muito rápido. Não pude sequer participar do funeral, tive que sair do Rio e aguardar os trâmites da Anistia, que tem uma espécie de acolhimento para defensores de direitos humanos em situação de risco e de violência extrema.

Você poderia relatar o que aconteceu na noite do crime?

Depois que saímos do evento na Casa das Pretas, peguei carona com a Marielle, como eu sempre fazia. Éramos vizinhas de bairro. Entramos no carro, e a Marielle preferiu ir no banco de trás, coisa que nunca fazia. A gente via fotos no celular e conversava sobre uma reunião que aconteceria no dia seguinte. Do nada, ouvi uma rajada de tiros. Eu me abaixei correndo e me enfiei atrás do banco. Uns segundos antes, Marielle tinha dito um "eita", mas não era de susto. Ouvi o Anderson gritar um "ai" de dor, percebi os vidros do carro quebrados, e a gente quase batendo na calçada. Tentei puxar o freio, a marcha e, enfim, parei o carro. Ainda abaixada, abri a porta para sair. Não vi nada. Na minha cabeça, a gente tinha passado de carro em meio a um tiroteio.

Quando percebeu que Marielle estava morta?

Eu saí do carro rastejando, estava tudo muito escuro, e eu falava “Mari calma, calma”. Eu estava ensanguentada e muito nervosa. Tinha dificuldade de ver lá dentro, mas percebi a Marielle presa pelo cinto e com a cabeça abaixada. Não queria acreditar naquilo. Para mim, ela estava desmaiada, e eu repetia “espera, calma, estou chamando a ambulância”. Quando a polícia chegou, ouvi um deles dizendo “cheguei aqui, ocorrência, tem dois mortos e uma sobrevivente”. Foi esse o primeiro contato que eu tive com a informação de que ela estava morta.

O que sentiu nesse momento?

Não consigo dizer o que senti na cena do crime. Eu só queria tomar conta daquele espaço porque não chegava ninguém que eu conhecia. Fiquei sozinha com aquela informação na minha cabeça “dois mortos e uma sobrevivente” até que chegou uma outra pessoa da coordenação. Nesse momento, eu já estava muito fragilizada, entrando em processo de choque, e ele me convenceu a ir para a ambulância.

Como foi o processo do luto?

No início, nada fazia qualquer sentido. Parecia um grande pesadelo do qual eu não conseguia sair. O luto foi um processo muito complexo, porque eu não consegui viver os ritos que são importantes como enterro, velório e missa. Meu luto foi aos poucos, em momentos pessoais. Vivenciei muito esse processo quando estive no Rio de Janeiro para fazer a reconstituição do crime. Na época, eu cheguei a encontrar com a Luyara (filha de Marielle) , com a Anielle (irmã da vereadora) e com a Mônica (companheira de Marielle) ; pude abraçar as três. Mas até hoje não pude dar um abraço nos pais dela e não estive com os meus amigos do gabinete. Então o luto é um processo permanente na minha vida.

Mas você sobreviveu.

Tem uma sensação que fala assim: "como aquele tiroteio atingiu o carro inteiro, matou a Marielle Franco, o Anderson, e eu saí completamente ilesa?". Talvez, se eu tivesse tropeçado na rua e caído, eu teria me machucado mais, como já aconteceu. Eu já caí de bobeira e quebrei um braço. Não é simples lidar com esse lugar dos sobreviventes e encontrar sentido nisso. Tem que ter muita terapia, muito apoio, amigos e amigas. Dá uma vergonha pensar que eu saí ilesa. Por mais que eu ame a vida, por mais que eu queira viver muito.

Que tipo de apoio recebe?

Eu me lembro que quando eu abri a porta para a Mônica entrar na minha casa no dia seguinte ao crime. Ela me olhou, segurou no meu ombro e disse: "Nossa, branquela, que bom te ver bem". Ouvir aquilo da mulher que tinha acabado de ficar viúva...Acho que se eu estivesse no lugar dela talvez eu estivesse com um ódio tremendo do mundo, sabe? Mas ela foi solidária de uma maneira muito real. Quando você tem filho, de alguma forma tenta se ver no futuro e valorizar a importância que tem para alguém. Nessa hora, um filho te coloca na terra e te faz querer seguir.

Você tem acompanhando o noticiário sobre o caso?

Sou jornalista. Em nenhum momento eu quis virar as costas para esse tema, muito pelo contrário. Acompanho absolutamente todas as notícias que saem. Sobre as manifestações de ódio, eu continuo seguindo a política do mandato da Marielle: não olho para isso. Tenho, é claro, uma preocupação com a família porque não deve ser fácil ter que lidar com isso. Mas as manifestações que chegam para mim são devidamente printadas e encaminhadas para os advogados.

Qual o legado da Marielle?

É tão potente quanto ela foi em vida. Na última eleição, foram eleitas três mulheres que tinham sido assessoras da Marielle. Ela segue viva dentro das muitas Marielles que surgem, que chegam com muita coragem e potência. Tentaram silenciá-la e o que ela representava, mas o efeito foi totalmente inverso. Então eu acredito muito nessa gente, nessa juventude que está chegando com tudo, nessas mulheres pretas.

Você viveu um trauma. Como está se recuperando?

Eu, pessoalmente, continuo seguindo na minha profissão. Sou jornalista e atuo nesses espaços de defesa dos direitos humanos. Mas normalidade não há. Eu gosto de frisar que não há normalidade possível porque assassinaram Marielle Franco. Isso não quer dizer que eu não busque viver meu dia a dia de forma saudável, vibrar com as minhas pequenas conquistas, com as minhas alegrias. A vida segue dentro desse contexto anormal. Mas tenho filho para criar, casa para dar conta, um relacionamento. Enfim, tenho que tocar a vida. Mas há momentos de extrema saudade. O aniversário dela, que sempre foi muito comemorado, foi um dos dias mais difíceis de 2018. Vou seguindo, até porque era isso o que ela esperava da gente.

Ela esperava que as pessoas fossem fortes?

A Marielle sempre esperou das pessoas o que elas têm de melhor e de mais forte para dar. Construiu relações de muito afeto, mas também de muita crença na força do outro. Eu pude dizer muitas vezes a Marielle o quanto gostava dela. Então ter podido verbalizar isso e ter trocado afeto com ela durante a vida me conforta o coração hoje. Não ficou nada a ser dito. É um alívio.