Política

Entidade indígena vai ao STF contra lei que permite missionários em terras de povos isolados

Apib argumenta que parágrafo viola o direito à saúde dos índios que ainda não foram contatados
Aldeia Maronal na reserva do Vale do Javari, na Amazônia Foto: Roberto Stuckert Filho / Arquivo O Globo
Aldeia Maronal na reserva do Vale do Javari, na Amazônia Foto: Roberto Stuckert Filho / Arquivo O Globo

RIO — A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com uma ação  no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira à noite contra um parágrafo da lei que prevê medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia de coronavírus e que diz respeito à permanência de missionários religiosos em terras com povos isolados.

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A Apib pede que o STF declare inconstitucional texto do artigo 13 da Lei 14.021 sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no último mês de julho e que permite a permanência de missionários em comunidades indígenas com apenas aval de equipe de saúde ou médico responsável. Após distribuição do processo no STF, a relatoria do caso ficou com o ministro Luís Roberto Barroso.

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Na petição apresentada ao STF pela Apib em conjunto com o Partido dos Trabalhadores (PT), a entidade argumenta que tal parágrafo viola o direito à saúde dos povos indígenas isolados, dada a "possibilidade legal de ingresso e permanência de missões de cunho religioso" nessas áreas.

A entidade ressalta ainda que dentre os povos indígenas não há dúvidas de  que os mais vulneráveis são os povos indígenas isolados, "visto que eles estão submetidos, de forma peculiar, a um grande leque de vetores de vulnerabilidade", seja pela questão imunológica, sociocultural, territorial,  politica ou demográfica.

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O artigo 13 da lei diz que "fica vedado o ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados, salvo de pessoas  autorizadas pelo órgão indigenista federal (Funai), na hipótese de epidemia  ou de calamidade que coloque em risco a integridade física dos indígenas isolados", porém, a polêmica está no parágrafo 1° que determina  que "as missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades  indígenas deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e  poderão permanecer mediante aval do médico responsável".

No argumento da Apib, esse parágrafo abre uma brecha para a atuação de missionários e religiosos fundamentalistas evangélicos que buscam contato com índios isolados na tentativa de convertê-los para sua religião.

A defesa jurídica da Apib afirma ainda na petição que o parágrafo  ameaça a integridade física dos povos indígenas isolados, garantida não somente pela Constituição como  também pela  Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, de 2016, da qual o Brasil é signatário. Cita ainda como espinha dorsal de seu argumento  o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 18 defende que a liberdade de crença não pode se sobrepor ao direito à saúde.

"A liberdade de manifestar a própria religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas", diz trecho da petição ao citar o pacto.

Revelações do GLOBO sobre a conduta do pastor, missionário e ex-coordenador de índios isolados da Fundação Nacional do Ìndios (Funai) Ricardo Lopes Dias tornaram insustentável a sua permanência no cargo. Dias Lopes foi exonerado há duas semanas pelo Ministério da Justiça .

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Dias Lopes é acusado por servidora que atuava no Vale do Javari, região com a maior presença de povos isolados do mundo, de "ameaça à  política pública do não contato aos índios isolados" e  "proselitismo religioso junto aos  indígenas recém-contatados".

Acesso à água potável

Denominado Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, o projeto que virou lei tinha como objetivo traçar medidas de vigilância sanitária e epidemiológica para prevenção de contágio e disseminação da doença entre os índios dentro e fora dos territórios originários, além de quilombolas, pescadores artesanais, comunidades e povos tradicionais.

Depois de passar pelo Congresso, o presidente Bolsonaro sancionou com vetos a lei para proteger esses povos durante a pandemia, entre eles o acesso universal à água potável; distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies; oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de  terapia intensiva (UTI); aquisição de ventiladores e máquinas de  oxigenação sanguínea; distribuição de materiais informativos sobre  novo coronavírus, além de pontos de internet nas aldeias para facilitar a comunicação com as autoridades de saúde

Ao analisar os vetos de Bolsonaro, o Congresso Nacional votou pela derrubada de 16 de 22 vetos,  garantindo o acesso à água potável, considerado um direito essencial.

Ainda no contexto de povos isolados, a lei prevê quarentena obrigatória para todas as pessoas autorizadas a interagir com povos indígenas de recente contato; suspensão de atividades próximas às áreas de ocupação de indígenas isolados; e oferta imediata de testes e equipamentos de proteção individual para os distritos sanitários que atuam junto a eles.

Bolsonaro ainda vetou dois dispositivos que davam prazo de dez dias para a elaboração de um plano de contingência para cada situação de contato com povos isolados e negou a elaboração de um plano de contingência para lidar com surtos e epidemias verificadas nas áreas de índios isolados.